Crítica Sara Figueiredo Costa 20 Maio 2022

Jogar a vida

A Diagonal Alekhine
Arthur Larrue
Quetzal
Tradução de Antonio Sabler

Se Alexandre Alexandrovitch Alekhine fosse uma personagem ficcional, a vida que se lhe inventasse soaria como algo excêntrico, a espaços inverosímil, mas nenhuma regra literária seria quebrada com essa hipotética narrativa. Só que Alexandre Alexandrovitch Alekhine existiu e aquilo que a documentação, os testemunhos e os registos oficiais guardam sobre a sua biografia compõe uma história absolutamente extraordinária, ainda que atravessada por várias zonas nebulosas no que aos factos diz respeito. Nascido na Rússia do tempo dos czares, campeão mundial de xadrez que levou o título para o túmulo, foi acusado de espionagem pelo governo soviético, adoptou a nacionalidade francesa, passou pela II Guerra Mundial jogando xadrez em eventos organizados pelos nazis e acabou por morrer em Portugal, em 1946, nesse ninho de espiões e futuros romances policiais que era o Estoril de então. A sua morte permanece envolta em mistério, tal como muitos episódios relevantes da sua vida, e, neste A Diagonal Alekhine, Arthur Larrue tira partido desses vazios biográficos para construir um romance que é tanto sobre o que terá sido a vida deste xadrezista como sobre o imponderável que atravessa todas as vidas, umas vezes sem grande estrondo, outras produzindo uma sucessão de acontecimentos e consequências dignas de uma saga.

O paralelismo entre o jogo de xadrez e a vida do jogador é claro desde o início da prosa de Larrue, mas não de um modo absoluto e nunca num registo que se esforce por encontrar equivalências semânticas e estruturais entre acontecimentos e jogadas, o que seria uma pobre homenagem ao xadrez e, com tamanha transparência, ficaria longe da complexidade de Alekhine – a pessoa e a personagem aqui criada. É em Lisboa, ainda perto do início da narrativa, que se desenha esse paralelismo e as regras improváveis em que se jogará, quando Alekhine almoça com Francisco Lupi, jogador de xadrez e, detalhe importante, irmão de um inspector da PVDE (antecessora da PIDE): «Alekhine parecia não admitir nenhuma diferença entre as guerras napoleónicas que tinham redesenhado a Europa e e os seus combates no tabuleiro. Quando Alekhine falava, Lupi tinha a impressão de que o jogo contava tanto quanto a história real.» (pg. 56) As restantes duzentas e cinquenta páginas do romance confirmam a impressão de Lupi, acrescentando-lhe leituras e camadas mais complexas. Alekhine vive para o xadrez, mas a sua devoção estará mais próxima de uma obsessão marcada pela vingança contra o mundo do que de uma paixão. Quando se vê encurralado pelos nazis, que planeiam utilizá-lo para espalhar a suposta teoria de um xadrez isento de traços judaicos (que é como quem diz, um xadrez que se jogue num mundo onde todos os judeus, jogadores e não só, tenham sido entretanto dizimados…), não é a devoção que o faz agir, e sim o medo, com o qual não é difícil identificarmo-nos, mas igualmente a suspeita de que talvez lhe cheguem dali algumas vantagens pessoais.

Alekhine é uma personagem indissociável da sua principal ocupação, mas é sobretudo alguém que se equilibra permanentemente à beira de um abismo – do alcoolismo ao casamento, passando pelas escolhas políticas e de cidadania. Que essa queda iminente se deva à sua conduta na vida e não à maior ou menor capacidade de prever as jogadas no tabuleiro é um detalhe para o jogador, mas não para o narrador, ciente dessa incapacidade de Alekhine reconhecer as suas próprias falhas sempre que estas não estejam definidas pelas 64 casas onde se desenrola o jogo. E é precisamente nesse desfasamento de visões, nesse desacerto entre a mundividência alucinada de Alekhine e o julgamento a que a História não deixou de o submeter, que se joga a eficácia deste romance. Larrue aproxima-se de Alekhine com precisão, compreendendo-lhe as fraquezas sem deixar de lhe enaltecer as forças e expondo impiedosamente todos os pontos expugnáveis com uma elegância na escrita que, em muitos momentos, chega a revelar uma certa ternura. Inclusive nas passagens em que é notória a discordância perante atitudes e tomadas de posição, o texto não deixa de ser um espaço onde a empatia tem lugar, mesmo quando a personagem escolhe caminhos ínvios. Perto do fim – do livro e da vida de Alekhine – o xadrezista terá escrito no seu diário (ou Larrue escreveu por ele): «Sempre achei que o jogo de xadrez era de essência moral. É muito indicado para corrigir os excessos de confiança e as certezas demasiado absolutas. Ele presta justiça. Castiga os insolentes.» (pg.242) Terá sido a mais certeira das antecipações de Alekhine, ainda que o tabuleiro já não fosse suficiente para a conter.

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