Crítica Sara Figueiredo Costa 2 Maio 2024

A estrada que é labirinto

O que é meu
José Henrique Bortoluci
Companhia das Letras

Ao longo de meio século, o pai de José Henrique Bortoluci atravessou o Brasil ao volante de um camião. Sozinho, quase sempre, passando meses longe da família, seu Didi ajudou a transportar materiais de construção que ergueram aeroportos, pavimentaram estradas, mudaram paisagens e formas de vida, primeiro em ditadura, depois em democracia. Em O que é meu, Bortoluci resgata do anonimato esse papel estruturante de seu Didi, dando-lhe voz e espaço, e de todos os que como ele ajudaram a mudar o Brasil, obreiros de uma modernidade, mas também concretizadores de planos governamentais que intensificaram a desnatação florestal e ajudaram a agigantar o fosso social. 

Logo nas primeiras páginas, este foco aberto sobre os anónimos, as suas histórias, as suas vidas e o modo como ajudaram a moldar um país, vai-se questionando a si próprio. Num registo onde honestidade e dúvida constante se contaminam, o autor sabe que tem em mãos uma matéria demasiado íntima e que as ferramentas da sociologia permitem análise, confronto e compreensão, mas não necessariamente o enfrentamento total com a própria história e muito menos com a memória de quem é tão próximo: «Desisto de nomear essa busca que enlaça passado e presente, história nacional e história de vida de um trabalhador, fatos e fabulação, deslocamentos e condensações, oralidade escrita, diferentes registros de linguagem que se complicam pelo ato da transcrição – que por si só, já envolve um processo nada inocente de tradução. Ao tentar reconstruir partes importantes de sua história, os fatos da sua vida vão se montando sobre uma estrada que se abre entre mim e meu pai. E essa história eu só posso escrever como filho.» (pg.31) 

O que é meu não é, então, um estudo histórico ou sociológico, mesmo que seja atravessado por reflexões dessa natureza e que contribua profundamente para uma compreensão da história recente do Brasil a partir dos seus protagonistas invisibilizados. Esta discussão permanente do autor consigo, uma negociação que parece nascer da necessidade de definir o registo em que escreve, cai por terra quando chega o diagnóstico de cancro colo-rectal para seu Didi. O que Bortoluci fazia antes disso, registar o pai, escutar, enquadrar o que ouvia num contexto mais amplo, continuou, mas a partir desse momento, a escrita assume a sua urgência e o seu lugar definitivo, o do cruzamento de todos os discursos que a escrita decidir reclamar para se cumprir. É assim que Bortoluci descreve os momentos de enorme fragilidade, do pai e seus, nas várias passagens pelo hospital, mas também as histórias de um passado individual e colectivo, os dados sobre questões laborais, literacia ou acesso a serviços básicos no Brasil dos séculos XX e XXI, as memórias da sua infância misturando-se (e às vezes encontrando incongruências, como é próprio de qualquer visita à memória) com as memórias do seu pai pela estrada fora. 

Esse discurso heterodoxo, plural, não resulta apenas do recurso a múltiplos registos de escrita e de pensamento, mas igualmente do facto de este ser um livro a duas vozes, a de José Henrique Bortoluci e a do seu pai: «Nós dois refletíamos sobre aquela série de acontecimentos com igual interesse, mas a partir de lugares muito diferentes. Eu pensava com as palavras que aprendi nos livros: classe, precarização, sujeito histórico, democracia, cooptação, consciência. Ele pensava com outras, vindas de sua vida prática: frete, carga, combustível, transportadora, patrão, impostos, pedágio.» (pg.133) O que é meu vem provar que o recurso às ferramentas ditas académicas das ciências sociais e humanas não têm por que impor um registo pejado de jargão ou uma leitura demasiado técnica do que quer que seja. Utilizadas a par com uma escrita que não afasta a visão pessoal, que se assume autobiográfica e que se deixa armadilhar pelas emoções, pela dúvida e pela fragilidade, o resultado pode ser este, um livro atravessado pela ternura, pelo reconhecimento da vulnerabilidade como lugar primeiro de uma ligação forte (entre duas pessoas, mas também entre as que compõem a comunidade) e pela reflexão séria em torno dos protagonistas da nossa história colectiva. Bortoluci escreve sobre o pai, e inevitavelmente sobre a doença do pai, que se atravessa neste processo, e escreve desse abismo onde a morte se anuncia mas onde a vida ainda finca os pés. As linguagens do autor e de seu Didi serão diferentes, mas nascem do lugar único que distinguirá os seres humanos de todos os outros animais: a capacidade de contar histórias. Será um modo ilusório de contrariar a morte, mas é o único ao qual reconhecemos alguma eficácia.

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