Crítica Sara Figueiredo Costa 27 Junho 2023

O livro que antecedeu o mundo

Contos Hieroglíficos
Horace Walpole
Tradução de Nuno Batalha
Antígona

O autor destes contos assegurou um lugar no cânone literário com O Castelo de Otranto, livro seminal para o que haveria de chamar-se romance gótico. Aliando uma profunda erudição a um sentido de humor afiado, outros escritos haveriam de abrir caminho para outras correntes, movimentos e explorações literárias e o que o non sense de Edward Lear ou o Surrealismo devem a este autor está bem patente no pequeno livrinho que a Antígona agora publica. Conhecido político inglês do século XVIII, Horace Walpole deixou as suas ideias liberais e a forte contestação à igreja católica atravessarem a sua literatura, nunca de um modo forçado, a que hoje chamaríamos panfletário, mas integrando essa mundividência nas narrativas que criou.

O autor apresenta assim este pequeno livrinho, num prefácio que surge como extra-texto, mas que na verdade é parte inseparável desta obra composta por seis narrativas: «Os Contos Hieroglíficos foram sem dúvida escritos um pouco antes da criação do mundo, e têm sido preservados desde essa altura pela tradição oral nas montanhas de Crampcraggiri, uma ilha inabitada ainda não descoberta.» Estabelecida a linhagem textual, Walpole divaga sobre a autoria destes contos, apontando possibilidades que remetem sempre para figuras inexistentes, míticas ou de criação colectiva sincrética, como Hermes Trimegisto. O absurdo, no entanto, não é apenas estilo, permitindo colocar o que em seguida se lerá num espaço-tempo mítico semelhante ao que envolve autorias como a da Odisseia, atribuída a Homero, ou outras de textos igualmente antigos e impossíveis de datar com precisão, onde a genealogia textual e a fixação de uma autoridade são labirintos para os investigadores e terrenos lendários para os leitores. Walpole prossegue: «Mas independentemente de ele ter escrito estes contos há seis mil anos, como acreditamos ser verdade, ou de alguém os ter escrito por ele durante a última década, estamos incontestavelmente perante a obra mais antiga do mundo.» Aceitemo-lo, pois, permitindos a deslocação da razão para os terrenos do absurdo.

Na trama destes contos estão lendas e narrativas muito antigas, das histórias das Mil e uma Noites às três filhas do rei. Walpole assume esses enredos, deixando-os reconhecíveis na sua estrutura, e vai exercitando a deturpação em modo absurdo, como um músico que parte de uma frase melódica conhecida e sobre ela exerce a liberdade de a ir declinando e adulterando a seu prazer. É assim que a jovem princesa de «Uma nova história e As Mil e uma Noites» foge de encantamentos produzidos por belas histórias e se salva de um destino fatal aborrecendo de morte o seu raptor, acabando por inverter os papéis e anulando a sentença que sobre ela pendia, num volte-face narrativo onde uma certa visão feminista do mundo não deixa de estar presente. E é assim que, na história «Um pêssego em aguardente: fábula milesiana», aquilo que parecia uma antiga narrativa sobre linhagens régias e descendências se transforma numa análise profundamente sarcástica do absolutismo, da monarquia e das trocas de favores e interesses que sempre alimentaram os círculos de poder, independentemente da época e do regime político.

As linhagens de poder e a sua legitimação são tema central nestes seis contos, e não apenas em «Um pêssego em aguardente: fábula milesiana». A sua análise serve de fio condutor de cada uma das narrativas, sempre recorrendo ao humor como forma possível de encarar os factos e permanecer mentalmente são: «(…) o arcebispo declarou ser absolutamente necessário obter uma autorização do Papa, por a noiva e o noivo terem relações de sangue em graus de proximidade proibidos: uma mulher que nunca existiu e um homem que já deixara de existir eram considerados primos direitos aos olhos da lei canónica.» A frase é do conto «O rei e as suas três filhas», mas, exceptuando o absurdo de uma mulher por nascer e um homem já morto agirem como dois seres viventes, não anda longe do que poderíamos ler num qualquer documento notarial emanado de uma qualquer casa régia europeia… Dizer que esse absurdo impede a comparação é não reconhecer o potencial da literatura para tentar compreender o mundo.

Como acontece com os hieróglifos para a maioria das pessoas, aqui se junta uma ideia de antiguidade perdida no tempo e uma autoridade perante o verbo que apenas o desconhecimento pode conferir. Só um egiptólogo leria um hieróglifo que descreva uma situação absolutamente banal do quotidiano como tal – para o resto de nós, ignorantes dessa escrita, não seria difícil imaginar uma cena régia, uma experiência religiosa, uma qualquer entidade proferindo palavras sibilinas nos mesmíssimos sinais que descrevem a tal hipotética situação quotidiana. É desse desfasamento que Walpole tira grande partido, parodiando a autoridade conferida pela antiguidade e pela impossibilidade de situar no tempo e no contexto certas narrativas, ao mesmo tempo que despeja um sarcasmo exímio na forma e no humor sobre os salamaleques, as intenções de grandeza e os jogos de poder que foram e continuam a ser pasto diário para as nossas vãs ambições.

→ antigona.pt

© Antígona