Metade da fé
O meu único desejo para os tempos vindouros é ter metade da fé que uma senhora desconhecida depositou em mim. Pouco antes das sete da manhã, um erro informático me obrigou a visitar o guiché da estação de trem para reconfirmar o bilhete. Eu ia carregada com a mochila, uma bolsa, dois sacos (um com roupas, outro com livros), quando no balcão ao meu lado, uma senhora cega, ouvindo que eu também ia para Coimbra, me pediu ajuda. E lá fomos: eu, a mochila, a bolsa, os livros, o saco e a senhora que segurou no meu braço para caminharmos juntas. Enquanto nos dirigíamos para o embarque, faltavam uns dez minutos para a partida, a senhora, um tanto preocupada, ia-me dizendo: entramos em uma qualquer carruagem e depois muda-se para o lugar correto.
Ao chegarmos ao cais, notei que o intervalo entre a plataforma e o degrau de entrada da carruagem era enorme. Foi preciso destreza e uma grande paciência (da senhora) para conseguirmos galgar o vagão. Por fim, lá dentro, qual não foi a minha surpresa quando não havia mais ninguém. Éramos apenas nós, eu e a senhora, que inadvertida, repetia não haver mal em termos entrado no primeiro vagão, bastava encontrar a poltrona 15 D na carruagem 21.
Logo partilhei o meu estranhamento, algo estava errado. A senhora sugeriu que pousasse as minhas bagagens e fosse buscar informação. Concordando, joguei tudo numa poltrona e saí, deixando a senhora dentro do vagão. No imediato em que pisei o apeadeiro, me dei conta que eram quase sete horas, a senhora estava sozinha num trem vazio que poderia arrancar a qualquer momento sabia-se lá para onde. Entrei de volta.
Argumentando que o provável era existir uma avaria, agarrei nas minhas tralhas (pra quê tanta coisa?) e estava a convencê-la a sair quando a senhora franzina, mirradinha, daquelas velhinhas que se curvam um pouquinho para a frente, fez-me uma pergunta acachapante: mas estamos na plataforma 1?
O meu mundo caiu. Quis que um asteroide atravessasse a galáxia e, de toda a humanidade, acertasse apenas e só a mim, reduzindo-me a nada. Nem de relance, por dois segundos, olhei para o número do cais de onde partiríamos. Como se apenas houvesse um destino, o nosso. Vi um comboio grande parado e presumi que seria aquele, arrastando-a para o caos da minha distração.
“Vamos depressa, ainda o apanhamos.” Disse-me sem ressentimentos enquanto descia os degraus de volta tentando transpor o obstáculo abissal no seu caminho: eu mesma. E desatamos a correr. Sim, as duas. Eu, com a bagulhada toda, e a senhora magrinha, agarrada ao meu braço e me arrastando, corria mais do que eu. Estação afora, fomos tal duas siamesas ao contrário, unidas pela minha presunção. Chegamos a plataforma 1 ao mesmo tempo em que a locomotiva iniciava a sua marcha. Perdemos a viagem.
A senhora ficou bastante agoniada. Asseverei que permaneceria com ela (consciente de que eu não representava nenhuma valia) até chegarmos ao nosso destino. Regressamos ao guiché para substituir os bilhetes, estava pronta para oferecer um novo para a senhora, mas o funcionário fez a troca sem levantar problema. Fomos, então, como calma, para o embarque correto. Quando estávamos chegando em Coimbra, perguntei à senhora se queria a minha ajuda para desembarcar. Mais uma vez, ela aceitou (eita mulher valente!). Fomos a conversar mais um pouco, até sairmos da gare, disse-lhe que fazia vários anos que não visitava a cidade dela. “Tudo mudado, moderno. Vai gostar”, afirmou enquanto se despediu sorrindo e me indicando onde ficava a paragem de táxis mais próxima.