Ironia ou paranóia, o mundo continua um caos
CENSURA JÁ!!
Ian F. Svenonius
Chili Com Carne
Tradução de Ondina Pires
Ian F. Svenonius é uma figura ímpar daquilo a que ainda podemos chamar contra-cultura nos Estados Unidos da América. Nascido em Chicago, em 1968, o seu percurso tem passado sobretudo pela música, em bandas como Nation of Ulysses, Weird War, XYZ, Escape-ism ou Chain and The Gand, não encerrando aí a sua intervenção no mundo. Pensador inquieto e sempre interrogando as instâncias que organizam comunidades, países e o mundo, tem escrito em diferentes publicações sobre temas como o consumo, a política, a omnipresença da internet ou a música. O livro que a Chili Com Carne agora publica reúne textos escritos para publicações como a Vice ou a Jacobin, entre outras, e teve a sua edição norte-americana em 2015, sem que a maioria dos artigos tenha perdido grande actualidade.
O discurso de Svenonius é tão estruturado como fechado sobre si próprio, tornando difícil decidir se é a convicção cega que o anima ou a ironia. O mais certo é serem ambas, sem que o autor dê demasiada importância a qual delas prevalece na recepção. Falará a sério quando diz que o twist alienou as pessoas e que, aliado à invenção da pílula, foi responsável por um individualismo exacerbado? Ou que o IKEA se aliou à Apple num plano para acabar com a acumulação de objectos, entretanto substituídos por coisas virtuais, e para destruir a harmonia das relações conjugais com os seus manuais de instruções impossíveis de cumprir sem conflito? A capacidade de disparar em múltiplas direcções, mais focado na libertação dos projecteis do que no seu trajecto ou eficácia, inclina a leitura para esse registo irónico, mas a assertividade de certas afirmações aponta no sentido inverso, como quando afirma que os muçulmanos dominaram a Península Ibérica apenas porque tinham açúcar… Já em The Psychic Soviet, livrinho onde reuniu um conjunto de ensaios que tanto falam sobre o fim da Guerra Fria como sobre a ascensão consumista do rock’n’roll, e que sugeriu que pudesse ser usado como uma espécie de autoridade, à semelhança de uma Bíblia, em certas discussões sobre o mundo, Svenonius tinha assumido essa dualidade como modo de acção, pelo que talvez não reste aos leitores mais do que navegar na indefinição e ir lendo os textos sem a certeza do modo como querem inscrever-se no espaço colectivo.
Ironia iconoclasta ou conspiração desenfreada, o pensamento de Svenonius não deixa de ser um manancial de pontos de partida para o questionamento de tantas ideias que assumimos sem discussão. As reflexões que o autor desenvolve neste Censura Já!! sobre a sociedade de consumo, os meios de controlo de multidões ou a omissão de certos discursos a partir do seu silenciamento por via da lei do mercado são sempre pertinentes, muitas vezes fundamentadas numa observação atenta dos mecanismos de relação social e de agenciamento cultural, e sempre com espaço para a subjectividade assumida das suas posições. O problema é o escorregar frequente para um exagero alucinado que acaba por esvaziar a pertinência da reflexão, como quando compara a Wikipédia à Stasi, polícia política da Alemanha de Leste, não revelando ponta de ironia nesse exercício.
Censura Já!! é um livro que merece leitura atenta e reflexão, talvez nestes tempos mais do que nunca (ou talvez esta seja uma sensação intemporal, mas sempre vivida como se fosse de agora). A partir dessa reflexão, que possibilita múltiplos caminhos, questões e formas de repensar o mundo, parece inevitável chegar à conclusão de que estaremos perante um conjunto de textos que muito devem à rédea solta das teorias da conspiração, um torvelinho de ideias dispersas e fragmentadas que parecem oferecer o amparo de explicar as contradições da existência. E ainda assim, não deixamos de estar perante textos que contêm perguntas às quais vale a pena dedicar tempo, sabendo que as respostas aqui oferecidas são umas vezes pertinentemente justificadas por uma certa leitura do mundo, outras cabalmente paranóicas, naquele registo que, de tão rebuscado, já não admite contraditório. De qualquer modo, Svenonius confirma que o gesto sempre inacabado de querer perceber o mundo também passa por leituras onde não há reflexo possível (na verdade, nem temos a certeza de estar perante um espelho ou um artefacto que distorce propositadamente os feixes de luz apreensíveis pelo olhar), mesmo que em muitos excertos consigamos vislumbrar um rasgo de identificação.