Destaque Andreia Brites 23 Maio 2022
Astrid Lindgren © Roine Karlsson

20 anos de ALMA, um prémio comprometido com o politicamente incorreto

Nas últimas duas décadas o Astrid Lindgren Memorial Award ganhou um lugar de referência no universo infantojuvenil e de promoção da leitura. Depois do Hans Christian Andersen, cuja história remonta ao pós 2ª Guerra Mundial, este é o mais valioso prémio atribuído a autores, narradores orais e instituições promotoras do livro e da leitura. Para assinalar a data redonda, o gabinete do prémio editou um volume com breves resenhas sobre cada um dos vencedores, destacando os méritos que lhes valem a distinção.
Partindo da leitura desse volume, traçamos um percurso sobre a identidade do Prémio ALMA e o que as escolhas revelam.

Nos bastidores: da criação aos critérios de funcionamento

Quando o prémio foi criado em 2003, havia uma dupla intenção: valorizar o acesso dos mais novos à leitura de grande qualidade e prestigiar a maior escritora infantojuvenil sueca, Astrid Lindgren, falecida em 2002. Tendo um valor monetário quase equivalente ao Nobel (cerca de €400.000), o Astrid Lindgren Memorial Award coloca a Suécia no mapa das referências que fazem a história da literatura infantil e juvenil, da ilustração e da promoção da leitura. Na Feira Internacional do Livro Infantil, em Bolonha, a cada primavera desde 2003, é em ânsias que muitos aguardam pelo anúncio do vencedor, transmitido por videoconferência a partir da Suécia. Meio ano antes, no outono, é divulgada a lista de todos os nomeados na Feira do Livro de Frankfurt, outro marco simbólico que direcciona as atenções para o prémio.

Instituído pelo governo, é no Instituto das Artes Sueco que o ALMA tem o seu gabinete. O Instituto é o responsável pela nomeação e pelo regulamento do júri, desde o número de jurados à duração dos seus mandatos. Por seu turno cabe ao júri decidir quais são as organizações de cada país que poderão nomear candidatos, quantos poderão estar no concurso, que perfil devem ter e quais as condições requeridas para as candidaturas.

Para apoiar todo este processo, assegurar questões logísticas e estar em contacto com os 12 elementos do júri, foi criado um gabinete no Instituto das Artes que se dedica em exclusivo ao prémio.

As organizações a quem cabe a responsabilidade de nomear candidatos têm obrigatoriamente de se dedicar ao livro e à leitura, preferencialmente numa prática ativa de promoção do acesso. Podem ser governamentais ou privadas, nacionais, regionais ou locais. Até dezembro de cada ano as organizações podem manifestar ao ALMA a intenção de integrarem o quadro de agentes nomeadores. A adesão é decidida pelo júri do prémio de acordo com as informações constantes num formulário disponibilizado no site.

Este critério aberto, que não se esgota em representações oficiais, é muito valioso. Assim, se por alguma razão um país se debater com o esvaziamento da cultura pelo estado, ou enfrentar uma ditadura em que alguns autores ou organizações podem ser vetadas, haverá sempre outras vozes internacionais que poderão colmatar a injustiça de um contexto adverso. Ainda, existindo a possibilidade de um país ter mais do que uma organização a nomear, especialmente se forem de territórios distintos, haverá igualmente mais nomes representados na lista de nomeados e maior diversidade. Corre-se menos o risco e a tentação de se cristalizarem figuras que ano após ano são sempre a escolha aparentemente mais válida.

Outro critério que contribui para um processo democrático é o facto de cada organização só poder escolher dois nomes do seu país, acrescentando, se assim o entender, outros dois estrangeiros. Foi graças a isso que Portugal teve, em 2022, seis nomeações: Bernardo Carvalho, Isabel Minhós Martins, Cristina Carvalho, António Jorge Gonçalves, André Letria e Catarina Sobral. Em anos anteriores, também foram nomeadas a Andante, associação artística, Margarida Botelho, Maria Teresa Maia Gonzales, Luísa Ducla Soares, Alice Vieira, a editora Planeta Tangerina, Luísa Dacosta, as Palavras Andarilhas e o Bibliomóvel de Proença-a-Nova.

No site do prémio acede-se à lista completa de organizações nomeadoras por país (na edição passada eram oriundas de 71 países), sendo fácil constatar que em muitos países é a sua secção nacional do IBBY (International Board on Books for Young People) a única e que preenche os requisitos. Porém, nem todos os países têm uma secção da principal associação do livro infantojuvenil no mundo, porque a quota de associado é cara e muitas vezes tem de ser um organismo público a suportar essas despesas. É o que acontece em Portugal, cuja entidade nomeadora é a DGLAB (Direção Geral do Livro, Arquivos e Bibliotecas).

Assim, com as secções nacionais do IBBY, há bibliotecas, associações de promoção da leitura, centros de pesquisa dedicados ao livro infantil, institutos públicos culturais e todos os laureados em edições anteriores. Isso resulta numa maior diversidade e representatividade, não apenas dos nomeados como das próprias organizações que, ao constarem de uma lista ratificada pelo júri do prémio ALMA, também ganham visibilidade para o seu trabalho e consequente reconhecimento interno e internacional. A Biblioteca Pública de Belgrado, a Associação de Ilustradores Argentinos ou o Fórum do Livro Infantil da Namíbia são apenas alguns exemplos.

Os nomes que marcaram duas décadas

Uma primeira impressão sobre a galeria de vencedores do ALMA configura alguns dados interessantes: há autores mais novos e mais velhos, o que comprova que o prémio não celebra toda uma carreira e sim o trabalho desenvolvido até à data; há mais mulheres do que homens; entre os 22 laureados 12 são escritores, 7 são ilustradores e 3 são organizações de promoção da leitura, o que corresponde genericamente à proporção de nomeações nas três áreas; há 18 países representados, sendo a Bélgica, a Suécia, os EUA, o Reino Unido e a Austrália os que contam com dois vencedores; a Europa está representada por 10 vencedores, a América por 7, a Ásia por 3, a Oceania por 2 e África por um.

Por um lado, há uma notória tentativa de representatividade, por outro são evidentes as diferenças de acesso ao prémio entre países do hemisfério norte e hemisfério sul, com exceção da Austrália que, é importante não esquecer, faz parte da Commonwealth e tem como língua materna o inglês, o que contribui muito para o acesso e a circulação dos seus autores no espaço anglófono e, consequentemente, no mundo.

Porém, as estatísticas evidenciam pelo menos uma preocupação de representação à escala planetária, sem que com isso diminua o padrão de exigência literária e de compromisso com a leitura.

É igualmente interessante constatar um diálogo entre o ALMA e o Prémio Hans Christian Andersen, cuja história remonta a 1956. Astrid Lindgren é distinguida com o prémio logo na sua segunda edição em 1958. A irreverência da sua escrita e o espírito profundamente livre da sua mais célebre personagem, Pippi das Meias Altas, mereceram ser celebradas e legitimadas numa fase de reconstrução do território físico e humano da Europa.

Quase cinco décadas mais tarde, o ALMA estreia-se com a distinção a Maurice Sendak e Christine Nöstlinger, ambos vencedores do HCA em 1970 e 1984, respectivamente. No ano seguinte, em 2004, é a vez de Lygia Bojunga (distinguida com o HCA em 1982) e em 2006 a de Katherine Paterson (HCA em 1998). Mais recentemente, Wolf Erlbruch foi distinguido com o HCA em 2006 e com o ALMA em 2017 e Jacqueline Woodson com o ALMA em 2018 e com o HCA em 2020, sendo a primeira autora que recebeu primeiro o Astrid Lindgren Memorial e só depois o Hans Christian Andersen.

Sobre Sendak, é consensual o epíteto de pai do picture book, o que está longe de ser de pouca monta. Mas, como se isso não bastasse, a sua visão do universo infantil bebe diretamente de uma percepção muito astuta da mente das crianças, abandonando mediações morais para libertar os protagonistas de maniqueísmos falsos.

O humor da austríaca Christine Nöstlinger vai na mesma direção. Os temas provocatórios como o da fábrica de crianças produzidas para corresponder aos caprichos parentais dos adultos corroem instituições alicerçadas no poder paternalista da sociedade que sucessivamente ignora as crianças. Há na obra da escritora um sarcasmo distinto da ironia de Sendak. Porém, ambos conseguem ser respeitosos e até ternos em momentos descritivos ou narrativos para com as suas personagens infantis. Ao invés, podem ser bastante violentos com a leitor adulto.

No que respeita as narrativas da escritora brasileira Lygia Bojunga, o testemunho de Lars H. Gustafsson no volume comemorativo dos 20 anos do ALMA e júri em 2004 é paradigmático: foi num livro de Bojunga que o psicólogo encontrou o poder de identificação entre uma jovem enlutada e revoltada que estava no seu consultório e Cláudio, que perdera o seu amigo pintor, na novela O meu amigo pintor. Conta Gustafsson que em diálogo com a autora, na cerimónia de entrega do prémio, esta assumiu que escreve para pessoas e que as crianças são pessoas, não projetos de pessoas por vir.

Embora seja uma questão que se possa colocar à obra das três escritoras, apenas Birgitta Fransson discorre sobre o assunto, no texto sobre Katherine Paterson. A certa altura, depois de relatar a euforia do momento em que deu a notícia do prémio à autora e de descrever o compromisso social da sua obra, a jornalista e crítica literária sueca partilha que lhe ocorrera, antes de se dedicar à leitura das narrativas de Paterson, se estas, independentemente da sua inegável qualidade literária, não poderiam estar algo ultrapassadas do ponto de vista contextual. É uma questão sensível, a da obra datada. Porém, o juízo leitor da jurada apaziguou-a: os temas continuam atuais e a densidade e emoções das personagens permanecem vívidas e verosímeis.

É algo que as três mulheres têm em comum, o facto de serem de idade relativamente avançada à época da distinção (todas nascidas na década de 30 do século XX), e desta refletir o valor de uma obra maioritariamente já realizada. Nos primeiros anos, e apesar de não ser um prémio de carreira, o ALMA arriscou menos e prestou homenagem a grandes nomes, já amplamente reconhecidos.

A partir de 2007, dá-se uma muito maior flutuação ao nível das idades dos vencedores, das suas origens e das suas áreas artísticas e de intervenção. O ALMA começa a divulgar nomes e organizações ao mundo. Começa com o Banco del Libro, uma indispensável organização não governamental venezuelana de promoção da leitura. Dotada de uma equipa dedicada às comunidades, sobretudo de geografias periféricas urbanas e rurais, o Banco del Libro vai ao encontro das pessoas para lhes levar leitura. Neste estreitar de relações, encontra voluntários nos bairros que promovem a leitura a partir dos livros que a equipa do Banco del Libro deixa no local. Na sede, recebem-se crianças e adultos das mesmas comunidades ou de qualquer outro território para visitas, requisição de livros, rodas de leitura, clubes de leitura, horas do conto, narração oral… Algo de semelhante carateriza o Tamer Institute, na Palestina e o PRAESA, na África do Sul, as duas organizações que completam o trio de vencedoras. O Tamer garante que haja leitura, escrita, imaginação e criatividade num território ocupado, oprimido, violentado e carenciado. Edita, traduz, dá a ler e, sobretudo, acolhe e vai até aos leitores, com os poucos recursos de que dispõe. “Com as palavras derrubamos muros.”, é o seu lema. Na Cidade do Cabo, o Projeto para Estudar uma Educação Alternativa na África do Sul assenta numa premissa: a de que todos somos contadores de histórias e que é isso que nos liga. Assumindo esse laço primordial, é preciso dar ferramentas para que possamos contar as nossas histórias, imaginar novas e ouvir as de outros. PRAESA leva livros a populações carenciadas, traduz livros para as várias línguas maternas e disponibiliza algumas destas traduções gratuitamente no seu site, para que todos possam um dia ler pelo menos um livro na sua língua.

Conheça o 22 laureados →

A palavra ativismo

As características que os vários jurados do prémio ALMA atribuem aos 22 vencedores têm em comum um sentido implícito de ativismo. Seja pela estética inovadora, pelo humor desabrido, pela violência dos temas abordados, pela sinceridade desconcertante da narrativa, pela empatia com quem sofre e é descriminado… A estas acrescentam-se outras que podem não parecer tão óbvias mas que têm, na leitura, um lugar transformador, eventualmente disruptivo, como a imaginação, o apagamento entre o real e a fantasia, a antropomorfização de animais e objetos que se manifestam como modelo ético, a eleição dos sentidos em detrimento da palavra como experiência subjectiva, de memória e estética, a capacidade de, pela imagem ou pela palavra, o discurso tomar o ponto de vista da criança…

Exigência no pensamento, desafio aos modelos sociais estabelecidos, curiosidade pelo mundo, respeito por nós e pelos outros, esperança e liberdade. Entre os vários nomes há os que facilmente se reconhecem como Philip Pullman ou Wolf Erlbruch, há aqueles cujo trabalho recolhia admiração num circuito mais pequeno e hoje são amplamente notados por especialistas tanto quanto por leitores, como Kitty Crowther ou Shaun Tan, há os menos conhecidos à escala planetária, como Baek Heena, muito conhecida na Ásia e menos conhecida na Europa ou a sueca Barbro Lindgren.

Em Portugal ainda há um longo caminho a percorrer na divulgação de muitos nomes distinguidos com o ALMA, sobretudo no que à narrativa juvenil/ jovem adulto diz respeito. Mas também na tradução da obra de Isol ou da própria Kitty Crowther. Como é possível que não existam edições portuguesas de livros de Lygia Bojunga? Ou que Ponte para Terabithia (D. Quixote), a maior obra de Katherine Paterson, não seja promovida como um ‘clássico’ contemporâneo junto dos leitores? E que não haja livros de Jacqueline Woodson ou Sonya Hartnett? Até que ponto a valorização da literatura juvenil não passa também pela assunção, por parte das editoras, de que é prestigiante ter no seu catálogo estes nomes, tanto quanto por parte dos mediadores de leitura, bibliotecários e professores conhecê-los e mostrá-los como obras tão válidas como as que comummente são apresentadas como cânone literário português.

Num momento perigoso em que há poucos escritores a escrever literatura para e/ou sobre jovens, talvez seja ainda mais premente dar a ler o que de melhor se tem escrito pelo mundo, como inspiração e esperança. Se as palavras derrubam muros e todos somos contadores de histórias talvez devamos ver para além do confortável privilégio do acesso e trabalhar ativamente nesse diálogo leitor que um prémio como o ALMA promove.

→ alma.se