100 Anos da Semana de Arte Moderna
A semana que abalou a arte brasileira celebra um século e o acontecimento é pretexto para celebrar, mas também para voltar a discutir o que realmente aconteceu em São Paulo, em 1922, e como foi sendo relido ao longo das décadas.
Entre os dias 13 e 18 de Fevereiro de 1922, São Paulo foi o palco de um pequeno terremoto artístico, multidisciplinar e festivo. Entre música, teatro, dança, exposições e saraus literários, pode dizer-se que nada voltou a ser como antes no panorama artístico brasileiro, mas também é possível ler esse momento como uma exaltação cultural e social que se circunscreveu a São Paulo e cujos ecos no resto do Brasil, e até no mundo, só se fizeram sentir mais tarde.
A Semana de Arte Moderna foi também um movimento de releitura da história brasileira, resgatando o colonialismo e a diversidade cultural como elementos que não mais foi possível ignorar e mergulhando na língua e nos seus muitos modos de concretização como matéria que ajudaria a moldar uma nova expressão literária, mas também artística, musical e de pensamento.
Um século passado sobre a independência do Brasil, com a modernização industrial a instalar-se e a indústria do café a prosperar, a disponibilidade de alguns sectores da burguesia de São Paulo para o patrocínio das artes e para as novidades que cruzavam influências europeias – bebidas por alguns dos artistas envolvidos em longas temporadas na Europa – e novos modos de olhar para o Brasil era notória. De acordo com alguns historiadores, certa rivalidade perante o Rio de Janeiro também terá contribuído para este apoio entusiástico das novidades artísticas que começavam a entrar em ebulição em São Paulo.
Um grupo de artistas instalou-se, então, no Teatro Municipal, alugado para o efeito com o apoio de vários patrocinadores endinheirados. Graça Aranha, Oswald de Andrade, Menotti del Picchia, Ronald de Carvalho, Mario de Andrade, Anita Malfatti, Heitor Villa-Lobos, Victor Brecheret, Di Cavalcanti e Guiomar Novais foram alguns dos artistas participantes, repartindo-se entre a literatura, a música, as artes plásticas e a dramaturgia sem grandes preocupações com fronteiras entre as diferentes linguagens artísticas. No foyer, uma exposição de artes plásticas desafiava o gosto parnasiano do público, até então pouco habituado a tamanha ruptura visual.
No palco, que abriu com a conferência «A emoção estética da arte moderna», de Graça Aranha, houve dança, música, declamações poéticas e outras performances, com a plateia a dividir-se entre o aplauso e os apupos épicos – sendo que estes últimos foram crescendo de tom ao longo da semana, como relatam vários dos seus participantes.
A palestra em que Mário de Andrade defendeu o “abrasileiramento” da língua portuguesa, convocando heranças indígenas e de origem africana, foi uma das mais vaiadas, bem como o sarau poético que reuniu vários escritores.
É provável que a mesma elite burguesa que patrocinou a Semana de Arte Moderna não estivesse preparada para o seu impacto, ou para as questões que esta veio levantar sobre arte, mas também sobre história, sociedade e até política. Ainda assim, a semana decorreu e as suas marcas prevaleceram contra todos os apupos.
Reler a Semana de Arte Moderna à luz do presente
Cem anos depois, a importância da Semana de Arte Moderna de 1922 é indiscutível, mas não são indiscutíveis as suas leituras historiográficas. Num contexto histórico-social muito diferente do de há um século, vários livros têm chegado às livrarias brasileiras com novas propostas de entendimento sobre a semana que mudou o Brasil. E a discussão tem decorrido também na imprensa e nas redes sociais, revelando a importância do evento, mas também apontando antecedentes pouco falados ou debatendo a pouca participação de mulheres e de pessoas negras neste momento artístico essencial. Não se trata de uma desvalorização, ao contrário do que poderiam temer as vozes mais conservadoras, mas de um olhar que se faz a partir do século XXI e que parece querer, sobretudo, reclamar as boas mudanças de 22 sem esquecer as mudanças em curso ou sentidas como urgentes por tantas pessoas que, há um século, não tinham qualquer margem para a fala pública ou a participação.
Apesar das referências à herança colonial e aos traços únicos da língua portuguesa falada no Brasil, reclamados sobretudo por Mário de Andrade e apoiados numa visão nacionalista que pretendia fincar o Modernismo brasileiro como uma espécie de refundação da nacionalidade cem anos depois da sua independência, a escravatura, a opressão dos indígenas e a violência que que estruturou a sociedade brasileira não foram temas tratados pelos modernistas, apesar de todas as suas loas contra o passado.
Modernismo em Preto e Branco, de Rafael Cardoso (Companhia das Letras), é um desses livros, colocando em causa uma certa ideia hegemónica que se formou em torno da Semana de Arte Moderna. Para o autor, há várias obras e artistas do início do século, anteriores a 1922, que precisam de ser convocadas para a discussão sobre a vanguarda e o modernismo brasileiro. Nesses primórdios pouco conhecidos do Modernismo brasileiro, muito centrados no Rio de Janeiro, surgiram obras pioneiras em áreas como as artes gráficas e a música popular, por exemplo, e o autor reclama a sua influência na Semana de 1922. Para além disso, Rafael Cardoso propõe uma leitura dos acontecimentos que assume a recuperação da Semana como grande momento fundador da arte brasileira moderna apenas nos anos 40, com o Estado Novo de Getúlio Vargas, que a assumiu como acontecimento seminal e hegemónico, acabando por “secar” antecedentes e outros momentos relevantes para a cena artística e cultural de então.
Outros títulos recentemente publicados ou anunciados para os próximos meses recuperam outros testemunhos e leituras. Entre eles, há textos publicados na imprensa da época e agora relidos para traçar novos perfis dos artistas envolvidos na Semana e das relações e debates que entre eles surgiram. 1922 e depois (Nova Fronteira) reúne textos de Mário de Andrade, Rubem Braga e Walmir Ayala e percorre uma vasta galeria de gente que participou activamente na preparação e nos acontecimentos do Teatro Municipal, entre eles Anita Malfatti, Di Cavalcanti, Villa-Lobos, Sergio Milliet, Tarsila do Amaral, Vicente do Rego Monteiro, Oswald de Andrade e o próprio Mário de Andrade.
Para os próximos meses estão previstos livros como uma nova biografia de Heitor Villa-Lobos, o músico mais destacado na Semana de Arte Moderna, trabalho assinado por Camila Fresca, com edição da Todavia, o volume Inda Bebo no Copo dos Outros – Por Uma Estética Modernista, que compila textos de Mário de Andrade publicados em periódicos ou em livro (edição Autêntica), com organização de Yussef Campos, e um livro de Carolina Casarin sobre o modo como as roupas usadas pelo casal Tarsila do Amaral e Mário de Andrade assumiram um papel decisivo na sua percepção pública como símbolos culturais (O Guarda Roupa Modernista, Companhia das Letras).
Mais livros hão-de chegar durante o ano, acompanhados de exposições e encontros onde a Semana de Arte Moderna de 1922 voltará a estar em discussão. Agora, talvez sem os apupos.