Destaque Andreia Brites 17 Fevereiro 2022

Podemos ver uma árvore?

Leitura de Como ver coisas invisíveis,
de Isabel Minhós Martins e Madalena Matoso.

Roteiro da minha deambulação leitora

“Se fechares os olhos durante alguns minutos, verificarás como começam a vir ter contigo pensamentos e memórias que surgem ao acaso. Esses pensamentos são facilmente interrompidos: por exemplo, basta aperceberes-te deles (“estou a pensar que estou a pensar”), alguém chamar-te ou perguntar-te qualquer coisa. No entanto, logo que a interrupção termina, a maré de pensamentos regressa novamente.
Apesar de parecerem surgir “ao acaso”, estes pensamentos encerram alguma lógica, já que quase sempre um leva a outro, por exemplo: uma ideia faz despertar uma dada memória; esta memória leva a uma certa imagem; esta imagem conduz a uma nova ideia.
É mais comum este modo sonhador acontecer quando estás, por exemplo, ocupado com uma tarefa que já dominas e que fazes em modo automático ou quando estás a caminhar distraído ou até quando lês: pensa-se que 20 a 30% do tempo que passamos a ler é, na verdade, passado a deambular, neste caso a ligar aquilo que lemos à nossa experiência pessoal.” (p.107)

Quando abri o livro tinha um propósito: recensioná-lo. A missão implicava uma leitura em busca de um ponto de partida, de um conjunto de características que o descrevessem e uma linha de análise, uma perspetiva. Como aprendi e tento por em prática: não almejar dizer o mais possível mas procurar um caminho para a leitura.

Estaria algures no segundo capítulo quando me assolou a ideia de escrever este destaque. Em argumentação comigo própria, decidi que fazia sentido. Não terá sido o primeiro momento em que deambulei entre o livro e a imaginação ou a memória. Foi o que registei por alterar a tal perspetiva que procurava desde as primeiras páginas.

Recordo que, quando na página 51, no capítulo dedicado à relação entre imaginação e criatividade se exemplifica um percurso de associação mental a partir da audição espontânea dos sons da cozinha, o meu cérebro viajou intensamente. Recuperei o som do meu frigorífico atual mas viajei até à cozinha da minha avó, ao parque de campismo e eventualmente a outros lugares que não retive.

“Imagina que estás a lavar a loiça. A tua cabeça está distraída. Não reparas que estás a ouvir, mas ouves: o rádio na varanda de um vizinho, o som da água no lava-loiça, o frigorífico que de vez em quando dispara… “Os sons da minha cozinha”, pensas tu a certa altura. E depois pensas: “a coleção de sons da minha casa”. E vais por aí fora: “a coleção de sons da minha escola”. Das férias. Da casa da avó… “Giro, giro” diz a criatividade depois de ter ouvido a imaginação “era cada pessoa ter uma playlist com as suas coleções de sons. Assim, quando tivesses saudades de alguém ou de algum lugar, bastava ir escolher uma coleção e mergulhar nesse ambiente.”

Quando fui recuperar esta passagem para o que escrevo nasceu um novo ramo nesta árvore: um exercício de escrita que fazia com professores numa oficina de formação. À data de hoje há uma razão para esta memória irromper agora e não na primeira leitura e prende-se com acontecimentos recentes que em nada se relacionam com a leitura do livro.

Porém, uma perspetiva muito óbvia parece ganhar forma: o processo de leitura deste Como ver coisas invisíveis funciona em espelho. Os exemplos que ilustram os argumentos e as informações científicas transformam-se, pela sua leitura, em experiências que os reiteram.

No terceiro capítulo, elenca-se um conjunto de perguntas de adolescentes sobre a imaginação e a criatividade. Algumas questionam comentários tantas vezes repetidos e ouvidos com a assertividade de uma tese. A autora desmistifica e, mais uma vez, convoca textos e contextos filosóficos, científicos e artísticos. De entre várias é a frase de Arthur C. Clarke “Um professor que pode ser substituído por uma máquina devia sê-lo.” (p.74) que me transporta para os períodos de confinamento, a capacitação digital e algumas práticas em sala de aula. Recordo queixas de alunos, comentários de professores e um documentário inspirador sobre um professor e a sua turma.

Já no capítulo dedicado ao processo mental que pode levar a ter e materializar ideias numa experiência criativa, vi-me a relacionar partes anteriores do livro com uma novela de Afonso Cruz, Vamos comprar um poeta e como poderia ler alguns excertos a uma turma num clube de leitura.

As vezes que deambulei à boleia deste livro foram inúmeras. Para fora, como estímulo para ações quotidianas, familiares, profissionais, e para dentro, recuperando memórias, identificando sensações e aprendendo.

Neste roteiro subjetivo espelha-se não apenas o título do volume mas também a experiência leitora e a noção de que esta, como as coisas invisíveis, se pode multiplicar, entretecer e relacionar de novo a cada releitura.

Entre esqueleto e identidade

A construção do livro obedece a uma estrutura clara, paradigma do que comummente se identifica como texto expositivo-argumentativo: apresentam-se ideias, sustentam-se com informações científicas, exemplificam-se com recurso ao pensamento de filósofos, artistas e cientistas que as legitimam. O que acresce a esta estrutura clássica é o questionamento permanente que se vai sugerindo ou afirmando ao longo dos capítulos, com especial destaque para o terceiro capítulo “Alguém tem dúvidas?”, integralmente dedicado a perguntas redigidas a um doutor imaginário que a todas responde com dedicação. A introdução ao capítulo é indicadora desta estrutura desconstruída: “As dúvidas costumam ser no final, verdade? No entanto, mesmo quando julgamos não saber nada, podemos saber já algumas coisas fundamentais.

“Decidimos, pois, começar pelas dúvidas. E, partindo delas, vamos puxando os fios deste labirinto que é a imaginação.” (p.62)

A recuperação de situações do quotidiano, de experiências facilmente identificáveis e um discurso dirigido ao leitor que interpela em diálogo transforma um tema muito complexo em algo que, apesar das suas dimensões de análise, integra a identidade e a subjetividade de todos. A validade da imaginação e da criatividade, que justificam o livro, são igualmente validadas pelo leitor que se torna agente no processo.

O capítulo “Uma história, uma experiência” é disso paradigma quando nos convoca a experimentar desafios que nasceram de dificuldades ou situações específicas vividas por artistas, cientistas e pensadores.

Ao discurso sem cedências simplistas ou moralistas, objetivo, fluido, claro e sem espartilhos somam-se as ilustrações que destacam conteúdos e os complementam com analogias ou perífrases visuais. As formas imperfeitas, a ausência de contornos, a colagem de elementos que se enquadram ou destacam no contexto espacial, as cores sobretudo primárias e as figuras a preto, os separadores com formas curvas, o movimento e a ocupação variável das páginas, tudo contribui para que a criatividade invada a informação sobre a criatividade e a imaginação.

Temos então três níveis de diálogo: o do texto com o leitor; o da ilustração com o leitor e o do texto e da ilustração entre si, todos ao serviço do mesmo propósito.

A estes acresce um último e inesperado nível: aquele em que as autoras, escritora e ilustradora, tomam a palavra para descreverem o processo de criação do livro, visto ser este o tema que guia o volume. Ao seu testemunho acresce ainda o dos revisores, através de três coisas que os inspiram. Como se de uma matrioska se tratasse, as camadas vão sendo reveladas.

Um contexto é um contexto

Como ver coisas invisíveis surge no catálogo do Planeta Tangerina integrado numa linha editorial informativa que tinha sido iniciada com Lá Fora, amplamente premiado, nomeadamente como Opera Prima nos Bologna Ragazzi Awards. Para além da exploração da natureza, Cá dentro mergulha no funcionamento do cérebro humano, Plasticus maritimus alerta para a poluição nos oceanos e divulga um projeto criativo a partir da recoleção de lixo das praias, e Gosto, logo existo dedica-se a desmontar as redes de falsa informação e sedução nas redes sociais e na internet. Estes são apenas quatro dos designados Projetos especiais (não ficção e não-só), onde também se encontra o Atlas das viagens e dos exploradores, Um ano inteiro e Dobra Letras.

Em todos se constata um discurso dirigido ao leitor jovem, desempoeirado e cuidadoso com as referências, meticuloso com as informações e simples nas propostas. A relação entre a leitura e a experiência transcorre estes títulos como marca identitária, como manifesto que convida a tudo o que Como ver as coisas invisíveis defende.

Não será, possivelmente, o último livro desta linha da editora. Mas se o fosse, fechava em beleza uma relação de conhecimento participado, em relação ao espaço, ao auto-conhecimento e ao comportamento. Recuperando a imagem das matrioskas, talvez o processo não seja tão vertical e mais horizontal, como linhas que se cruzam num emaranhado de ramos e folhas. Talvez uma árvore pudesse ser uma imagem mais feliz, mais viva, mais auto-referencial, mais criativa.

→ planetatangerina.com