Saramaguiana
por Pilar del Río 21 Junho 2023
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Somos aquilo que falamos

Autoridades, amigas e amigos de países distintos, cúmplices todos no respeito pelas culturas que nos fazem ser o que somos: quando o respeito e a pluralidade cultural ondulam como bandeira, os homens e as mulheres, não importa a idade nem o vigor físico, compreendemos que estamos em casa, sentimo-nos protegidos e o nosso sentido de responsabilidade aumenta. Hoje, aqui, estamos crescendo porque a cada intervenção aumenta o conhecimento da diversidade que constituímos e que conscientemente construímos.

Martin Amis, o grande escritor britânico recentemente desaparecido, dizia que «A literatura não é necessária para a vida, mas para a civilização». Por isso estamos aqui, para continuarmos a acrescentar notas à civilização que somos, às civilizações que reconhecemos, por termos lido e integrado, e que queremos que avancem através do diálogo, da música maravilhosa que deveria soar em todo o mundo ao invés dos barulhentos canhões e das ameaças que diariamente são perpetradas. Falo de respeito e de diálogo porque, embora sejam necessários, o mundo não os está a praticar, há muitos, em demasia, que preferem o ensurdecedor barulho da violência em lugar do diálogo e da negociação. Sem pudor proclamam “isto é meu, quero mais, vou destruir a tua casa, o teu idioma, a tua saúde, sou um guerreiro, procedo da morte”. E, proclamando estes absurdos, vão e matam. Estão a matar.

No entanto, enquanto muitos assim se pronunciam em várias partes do mundo, aqui, em Assunção, hoje pratica-se o diálogo, diz-se que somos seres de palavras e de palavra, que melhor definição para homens e mulheres capazes de abrigar sonhos e de usar a razão e a consciência como valores. “Somos o que lemos”, anuncia esta nossa convocatória. Muito bem, há uns dias li uma história que aconteceu com emigrantes que chegaram numa embarcação a um lugar que para eles não tinha nome, estavam perdidos, famintos, com medo, depois de muitos dias navegando. “De onde são vocês?”, perguntaram-lhes. E eles, olhando para o mar, só puderam responder: “Somos da Terra, viemos da Terra”. Sim, todas e todos somos da Terra. Asseguro-vos que ler a declaração destas pessoas me fez ver o mundo de outra maneira, entendê-lo mais e melhor. Soube então que tinha que começar a minha intervenção com as palavras por eles deixadas, deveria dar o testemunho da sabedoria de desconhecidos capazes de ler a humanidade mesmo diante do horror daqueles que marcam território. E que o fazem como os animais, sem razão nem consciência, e uma vez marcado o que consideram seu vão em busca de mais e mais. As pessoas de uma embarcação desmentem a história da humanidade contada como história de batalhas e não como encontros de pessoas nascidas na terra, encontros que rendem frutos em forma de cores, músicas, aromas e literaturas. Hoje, aqui, também fazemos história ao contar histórias, cada um no seu idioma, compreendendo-nos e compartilhando. Não entendo o guarani, mas ser embalada pelo seu som é um prazer que agradeço como o melhor presente que possa receber. Nenhuma jóia seria mais linda.

Estou aqui na qualidade de presidenta da Fundação José Saramago. Deixem-me que diga que a fundação tem, segundo consta na sua declaração fundacional, três objetivos: o encontro de culturas, a denúncia da emergência climática e o cuidado com o meio ambiente e, englobando os dois anteriores, a Declaração Universal dos Deveres Humanos, simétrica aos Direitos Humanos. Há anos estamos a trabalhar na Declaração de Deveres Humanos, documento que foi entregue às Nações Unidas, e que procuramos divulgar no mundo como um exercício de civilidade. É um contributo que procura travar o desinteresse pelos assuntos públicos e comunitários e que também procura cortar o passo daqueles que reclamam representatividade sem estarem interessados pelo bem comum, só por aumentar o seu poder. Conhecemos estas situações, diante delas assumimos um compromisso de intervenção.

Disse que o encontro de culturas é um mandato da fundação. José Saramago escreveu sobre Portugal e contou momentos da história do seu país para que os portugueses pudessem ser melhor entendidos no mundo. Há, em Memorial do Convento, uma mulher chamada Blimunda que é capaz de ver o interior das pessoas e saber se elas carregam a capacidade de decidir, também chamada vontade. Blimunda, com o seu dom, reúne vontades e permite que os seres humanos voem numa Passarola que os levante muito mais alto do que jamais havia estado um ser humano desde que o mundo era mundo. É uma personagem literária, uma mulher que assombra, também um motivo de alegria para quem com ela se encontra.

Depois, José Saramago escreveu sobre Fernando Pessoa, que tinha um heterónimo chamado Ricardo Reis, capaz de criar versos lindos e terríveis como: “Sábio é o que se contenta com o espetáculo do mundo”. O espetador é sábio?, perguntou-se alarmado José Saramago. A resposta foi um livro de dimensões impressionantes: O Ano da Morte de Ricardo Reis. Esse ano foi o de 1936, terrível para o mundo, o ovo da serpente estava a ser chocado, o nazismo anunciava-se e o narrador José Saramago pôs Ricardo Reis a olhar o “espetáculo” do mundo, e o poeta experimentou a tristeza profunda.

Mais tarde, José Saramago quis aproximar-se desta América e escreveu A Jangada de Pedra, ou seja, a Península Ibérica, com os seus homens e mulheres, com os seus idiomas, usos e costumes, com os seus rios e montanhas, pôs-se a navegar até este continente para estar próximo dos que aqui vivem. Trata-se de uma viagem diferente, os europeus não chegariam como colonizadores – essa figura maldita, assim como o império – mas como gente com ânsia de conhecer, viajar, compartilhar, amar e ser amado. Por outras palavras, viver.

Depois, José Saramago refletiu sobre ideias que cruzam os séculos e nem sempre são libertadoras, dependendo de quem as interprete. Falo das religiões, falo daquela que assinala o tempo em que vivemos, ou seja, o ano de 2023 da Era Cristã. Em O Evangelho segundo Jesus Cristo, José Saramago escreveu sobre a vida de Jesus, o seu passo pela terra, as suas propostas, relações, amores e o seu terrível final. Também se ocupou das interpretações que se faz da mensagem cristã, tantas vezes desonesta, ameaçadora e bélica, com interesses espúrios escondidos por detrás de uma doutrina que era de igualdade, respeito pelas mulheres, separação de poderes, de harmonia entre os seres humanos e destes com a natureza. Por certo, esse livro foi repudiado por dogmáticos de diversas índoles, e embora José Saramago não tenha sido crucificado, não foi por falta de vontade de muitos.

Mais adiante, José Saramago continuou a refletir sobre a cegueira universal que se estende sobre a humanidade em Ensaio sobre a Cegueira, ou sobre a distopia que é viver num mundo que conta com milhões de excluídos, assunto tratado em A Caverna. Escreveu sobre a morte que nos espera a todos, feito natural que não seria violento se fosse mediado pelo amor, como se vê em As Intermitências da Morte; também construiu uma história de amor em torno de uma mulher desconhecida,  ou seja, refletiu sobre a capacidade de procura e de encontro dos seres humanos em Todos os Nomes. E voltou a ocupar-se do Deus da Bíblia, agora visto por Caim, e assim chegou à sua última obra, que não pode acabar porque a morte se interpôs, mas que foi publicada como ele a deixou. Chama-se Alabardas, alabardas, Espingardas, espingardas, é um título estranho, sim, mas a culpa é de Gil Vicente, pois é um verso de Exortação da Guerra e é muito significativo. Com Alabardas, protegido pela citação do autor do século XVI que escrevia em português e espanhol e era um homem de encontros de culturas, José Saramago quis despedir-se da vida e da escrita.

E sabem uma coisa? Nas últimas páginas deste livro fala-se do Paraguai. Sim, do Paraguai, da Guerra do Chaço, dos homens que a Bolívia mobilizou e do que o Paraguai conseguiu reunir. A ação deste livro transcorre numa fábrica de armas que tem o nome de “Belona”, a deusa romana da guerra. Não vou contar o argumento, só direi que um funcionário tenta saber por que motivos se vendem armas para um exército e para o outro não, se havia razões ideológicas ou se o que impera é o negócio. As lembranças de José Saramago sempre diziam que, se existem fábricas de armas haverá, inexoravelmente, fábricas de conflitos. As armas fabricadas sempre encontrarão destinos, será aqui ou ali, mais perto ou mais longe, mas o mercado encontrará sempre saída para o seu produto, e fá-lo-ão diante da perplexidade e da dor de quem não entende que se matam seres humanos para defender as pátrias, que se mata com armas sofisticadas, mas não se usa a tecnologia para acabar com a fome no mundo; ou que se chega a Marte mas não se coloca um travão na crise ambiental, esse novo pesadelo que nos deixa sem ar, sem água e sem vida.

Pois sim, José Saramago fez referência ao Paraguai nas últimas páginas que escreveu na sua vida. Não fala do país, só faz uma reflexão sob o ponto de vista da fabricação de armas. Não fala da sua gente nem das suas paisagens, só estuda o terreno do ponto de vista da indústria da guerra. Não há declaração de amor. É um romance, não é um ensaio, mas José Saramago quis despedir-se fazendo um alerta. Disse: “Isto está a acontecer”. E é verdade.

E é verdade também que somos o que lemos e o que falamos. Estou muito agradecida por poder falar sobre quem nos conta, os náufragos que chegaram da terra ou José Saramago, que quis navegar em jangada de pedra para encontrar outras e outros para, assim, descobrir-se a si mesmo. Este é um capítulo mais neste concerto de vozes e de criação que é a vida que celebramos, convocados sempre pela paixão do diálogo plural entre diferentes, porém não estranhos, nem distantes.

Nós, aqui e agora, somos o centro do mundo. Que ninguém nos roube essa convicção.

Muito obrigada, Muchas gracias, Aguyjé.

(Asunción, Paraguay, mayo 2023)

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