Saramaguiana
por Ricardo Viel 13 Julho 2023

Um enigma que mora na biblioteca de José Saramago

Entre os milhares de livros da biblioteca de José Saramago há um volume que carrega consigo um enigma. Trata-se de um raro exemplar da primeira edição do romance Corpo de Baile, de João Guimarães Rosa, publicado em 1956, no Rio de Janeiro, pela Livraria José Olympio. O livro traz uma dedicatória do autor que diz:
A ELMANO CARDIM,
grande e querido Amigo,
com a sincera admiração
e afetuoso abraço
do
Guimarães Rosa.
Rio, 27.II.56

Elmano Cardim foi um jornalista brasileiro, membro da Academia Brasileira de Letras (ABL) desde 1950, falecido em 1979, aos 87 anos. José Saramago nunca mencionou o seu nome em entrevistas, nos seus diários ou em qualquer outro documento pessoal. Nada indica que tenham sequer sido conhecidos. Segundo a família de Cardim, o jornalista esteve em Portugal em 1965, para uma visita às Beiras e a Lisboa. Temporalmente, é possível que se tenham conhecido, mas por que Cardim daria o livro a uma pessoa que acabara de conhecer e que, naquela altura, estava longe de ser um renomado escritor?

O crítico literário e poeta Antonio Carlos Secchin, também membro da Academia Brasileira de Letras, desde 2004, considera pouco provável que Cardim tenha oferecido o livro diretamente a Saramago. «Quando alguém repassa um livro a si dedicado, costuma registar o facto, para atestar a “legitimidade” da obra ao passar para outras mãos. Uma espécie de “transferência de propriedade, com nova dedicatória”, e isso não consta nesse exemplar». Segundo Secchin, Rosa era candidato a uma cadeira na ABL desde o começo da década de 1950, o que explica que tenha tido a preocupação de dedicar o livro a um possível futuro eleitor.  «O Guimarães Rosa candidatou-se no ano seguinte, em 1957, sendo derrotado por Afonso Arinos (de Melo Franco). Seria eleito numa segunda tentativa, em 1963, quase certamente com o voto de Cardim. E também o de Afonso Arinos, a quem escolheu para o receber na ABL», conta o crítico.

Depois da morte de Cardim a sua biblioteca foi desfeita, grande parte dela foi vendida a um livreiro do Rio de Janeiro que a revendeu a vários alfarrabistas e colecionadores, conta a família do jornalista. Parte da coleção foi parar a uma Universidade do Texas, diz Heloísa Cardim, neta de Elmano Cardim.

A primeira visita de José Saramago ao Brasil aconteceu em setembro de 1983, quando passou pelo Rio de Janeiro. Poderia José Saramago ter comprado o livro num alfarrabista nessa altura ou numa de suas passagens posteriores pelo país?
O editor José Mário Pereira, autor de um livro sobre a editora José Olympio, grande conhecedor do mercado livreiro e dos alfarrabistas brasileiros, coloca a hipótese de um amigo ou admirador do escritor lhe ter oferecido o livro. Pereira chega a sugerir um nome: o bibliófilo José Mindlin. «O Dr. Mindlin tinha fascinação pelo Guimarães Rosa, e se orgulhava de ter em sua biblioteca os originais de “Grande Sertão: Veredas”, que pertenciam à editora José Olympio. Era comum levarem grandes escritores de passagem por São Paulo à casa dele para ver a sua biblioteca. E então ele mostrava esses originais do Rosa, entre muitos outros. O editor do Saramago no Brasil, Luiz Schwarcz, deve ter agendado uma visita do Saramago ao Dr. Mindlin, de quem era amigo. E na visita, certamente diante do interesse de Saramago por Guimarães Rosa, tê-lo-á presenteado com esse exemplar que pertenceu a Elmano Cardim.» O empresário José Mindlin, um dos maiores colecionadores de livros do Brasil, manteve, de facto, uma relação de amizade com José Saramago. Na sua biblioteca, que foi doada à Universidade de São Paulo após a sua morte, em 2010, consta uma primeira edição de Memorial do Convento, com chancela da Difel, com uma dedicatória de Saramago a Mindlin, com data de dezembro de 1983.  

O editor Luiz Schwarcz, fundador da Companhia das Letras, confirma que esteve na casa de Mindlin com José Saramago algumas vezes, mas não se recorda de ter visto o empresário oferecer algum livro raro ao português. «Pode ter acontecido e eu não me lembrar, mas acho difícil que o José Saramago não relatasse isso nos diários.»

Ao fim de todos estes anos, o enigma segue sem solução. Como e quando chegou às mãos de José Saramago o raro exemplar de Corpo de Baile com uma dedicatória de Guimarães Rosa? Há livros que guardam mistérios irresolúveis.