
Que centro, que periferia, que vida?
Questionar segregações que fingem ser naturais, escutar quem vive fora dos diversos centros definidos pelo poder, pelo rendimento, pelo urbanismo, e propor outros modos de viver em comunidade são temas desenvolvidos por Carla Fernandes numa entrevista à revista Buala.
Na revista Buala, vale a pena ler a entrevista com a jornalista, escritora e documentarista Carla Fernandes. Conduzida por Marta Lança, a conversa parte do trabalho de Carla Fernandes na lisboeta Afrolis – Associação Cultural, espaço de produção e difusão de narrativas afro-descendentes, mas também do seu filme Nós Não Viemos do Vazio, sobre a presença africana em Portugal, os estereótipos associados a esta presença e os modos possíveis de os derrubar.
Um excerto, logo no início da entrevista, quando Marta Lança pergunta: «Que espaços escolheria como modo de memorialização da colonialidade na grande Lisboa?» Eis o início da resposta de Carla Fernandes: «A travessia da margem sul para Lisboa. A concentração de mulheres negras trabalhadoras domésticas que ocupam o barco de forma tão familiar que parecem estar na sua sala de estar. O modo como chegam à cidade de Lisboa, se dispersam e desaparecem do centro, mantendo o centro a funcionar, sem que se façam notar. Como fantasmas que se movem e deixam a sua energia ora confortante – assim como um parente cuidador, carinhoso, que se foi – ora incómoda – como uma alma presa à materialidade, recusando libertá-la, talvez por medo de ser desmascarada pela inegável presença que se faz sentir nos nomes de ruas, nas comidas de restaurantes, nas músicas de bares e festas, nos costumes, nos habitantes, etc.»
A conversa prossegue, muito focada na cidade de Lisboa e nos seus arredores como espaços onde os vários conflitos abordados por Carla Fernandes são particularmente visíveis, mas estendendo-se a muitos outros temas: «Temos ocupado a cidade de Lisboa transversalmente em termos culturais com a música e a gastronomia. São dois formatos inegavelmente aceites e também bastante bem tolerados até quando envolvem a presença física de corpos negros. Há vários espaços, no centro de Lisboa, em que se pode comer comida africana e ouvir música do continente em que a grande maioria das pessoas presentes é diversa. Mas em geral, a ocupação negra de espaços da cidade continua a ser taxada como temática. Bairros em “Zonas Sensíveis”, festas da lusofonia, cinema africano, ativismo, o primeiro “afro-algo”, etc. Ou seja, nesta perspetiva, a periferia continuaria a ser o nosso lugar. Mas, em termos de dinâmica, o que me interessa é pensar a perceção de periferia relativamente a quê afinal? Tem sido esse trabalho que faço com a Afrolis, ou seja, o reconhecimento de que existem vários centros e a experiência das pessoas afrodescendentes pode ser um deles.»