Destaque Sara Figueiredo Costa 2 Março 2021

Quando o espectáculo não pode continuar

Concertos, peças de teatro, performances, tudo foi cancelado desde que a pandemia de Covid-19 começou. Sem fontes de rendimento, os trabalhadores deste sector da cultura enfrentam uma situação até agora inimaginável e, entre pedidos de apoio e reivindicações de há muito, traçam o quadro de um sector a braços com uma precariedade congénita.

Foram muitos os sectores que viram a sua actividade afectada pela pandemia de Covid-19, da restauração ao comércio, da indústria aos serviços, mas nenhum terá visto a sua existência tão drasticamente ameaçada como o dos espectáculos. Teatro, música, performance, circo, tudo aquilo que decorra em cima de um palco ou noutro espaço cénico, frente a uma plateia com muitas ou poucas pessoas, está parado. Em Março do ano passado, cancelaram-se os primeiros espectáculos e, apesar de algum fôlego que parecia estar a ser retomado nos meses de Verão, com a redução do número de casos de infectados e o desconfinamento que a sociedade portuguesa pôde experimentar depois de várias semanas de suspensão a permitirem um tímido regresso à boca de cena, o fim do ano trouxe de volta a inactividade.

Quem ficou em casa, cumprindo o confinamento, sentiu falta da cultura. Músicos e actores foram aplaudidos virtualmente, enquanto mostravam a sua arte em transmissões na internet. Foram gestos simbólicos e de apoio mútuo, enquadrados por aquilo que se pensava ser uma situação breve e momentânea. Meses mais tarde, os aplausos aqueceriam o coração de quem os recebera, mas não chegavam para assegurar o pão na mesa.

Em Março de 2020, quando já era claro que a suspensão de todos os espectáculos não seria para durar apenas uns dias, o Ministério da Cultura anunciou que a Direcção Geral das Artes (DGArtes) manteria o apoio já concedido a todos os projectos suspensos, bem como os compromissos assumidos com companhias e trabalhadores independentes pelo OPART, organismo que gere o Teatro Nacional de S. Carlos, e pelos teatros nacionais D. Maria II e São João.

No mês seguinte, iniciava-se a linha de apoio criada no âmbito do Fundo de Fomento Cultural, destinada a apoiar a criação artística de todas as entidades que não recebem qualquer apoio financeiro. Ao mesmo tempo, o Cena-STE (Sindicato dos Trabalhadores de Espectáculos) divulgava os resultados de um primeiro inquérito no sector: 98% dos trabalhadores inquiridos tiveram trabalho cancelado, sendo que cerca de 85% de todos os que responderam ao inquérito tinham estatuto de trabalhadores independentes, portanto, sem protecção laboral. Pelo meio, houve a ideia lançada pelo Ministério da Cultura de realizar o TVFest, um festival musical transmitido na RTP que iria ter um investimento de 1 milhão de euros. Depois de muitos protestos do sector cultural, numa altura em que já era notório que as dificuldades afectavam muito mais agentes culturais – entre artistas e técnicos – do que os poucos que seriam apoiados pelo evento, o concerto acabou por não acontecer.

Rui Galveias, do Cena-STE, falou à Blimunda sobre os apoios entretanto disponibilizados pelo Ministério da Cultura, mas igualmente sobre as dificuldades que estão a afectar profundamente o sector: «Há um conjunto de apoios na área dos apoios da DGArtes, concursais, que mudam muita coisa. É algo que vem da discussão do Orçamento de Estado e que reflecte reivindicações que o sindicato tinha e que foram colocadas, levando a que todos os elegíveis fossem apoiados este ano. Isso faz uma grande diferença.» Estes apoios no âmbito da DGArtes destinam-se a estruturas, não a trabalhadores, e têm permitido assegurar o funcionamento de várias companhias, associações e outras organizações. A juntar a estes, há uma linha de apoios para associações e empresas cuja eficácia, segundo Rui Galveias, depende da escala: «75 mil euros numa empresa média, não é assim tanto, se imaginarmos que tem 50 trabalhadores… Depois há os apoios para artistas individuais e para associações, esses são bem-vindos, são mais um apoio. Vamos perceber como é que depois se reflectem e como é que se chega a eles, o tempo que demora, as dificuldades, porque são apoios não concursais. Queremos crer que serão simplificados, mas temos de perceber quais serão as dificuldades e os atavismos a que temos assistido no resto dos apoios.»

Um dos problemas com que o sector se depara é o facto de a maioria dos trabalhadores, independentemente de serem actores, músicos, técnicos ou com outras funções, trabalha de forma precária, a recibos verdes, muitos deles falsos recibos verdes, já que há um trabalho contínuo para as mesmas entidades, e essa realidade tornou-se regra. De tal forma que, para Rui Galveias, «passou a haver uma ideia de que isso era normal e correcto, e não é.» O sindicalista explica que «o resultado dessa precariedade foi a suspensão da actividade fazer com que estas pessoas ficassem numa situação extremamente difícil. Além disso, acrescenta Rui Galveias, há os trabalhadores independentes que deixaram de ser independentes e passaram a ser informais, porque se endividaram e ficaram de tal forma amarrados a dívidas na segurança social, são a grande maioria dos trabalhadores informais, ou seja, isto não é uma opção estética, vamos dizer assim, é uma limitação à forma como se vive na área da cultura e que nos empurra para esta situação de informalidade. Estas pessoas estavam completamente desprotegidas.»

Os invisíveis

Quando entramos numa sala de espectáculos para assistir a uma peça de teatro, ou no recinto onde vai decorrer um concerto, aguardamos pela chegada dos actores e dos músicos e são essas pessoas que vemos enquanto decorre a função. Contudo, longe dos holofotes do palco, há uma série de outras pessoas que trabalham para garantir que o espectáculo acontece. Técnicos de som e de luz, pessoas que erguem as estruturas de palco e os cenários, gente com força de braços e precisão há muito estudada que transporta toneladas de equipamento e o coloca no sítio certo, gestos que nos encaminham para o lugar correspondente ao bilhete, trabalhadores da limpeza que garantem a higiene do espaço, antes e depois do espectáculo. São muitos e muitas, quase sempre invisíveis, absolutamente essenciais. 

Os técnicos de som e luz e os produtores musicais são, hoje, trabalhadores altamente qualificados, ao contrário do que poderia acontecer algumas décadas atrás. Quem trabalha em teatros, salas de espectáculos e outras estruturas, tendo um contrato de trabalho, continua a receber o seu vencimento, mas há muitos trabalhadores free-lancer nesta área e esses não beneficiam da protecção e dos direitos que um contrato assegura. Como diz Patrícia Carvalho, produtora musical, «nos primeiros meses, as contas iam-se pagando, mas depois começa a não haver dinheiro e tudo se complica muito. Claro que quem tem contrato também está mal psicologicamente, mas é mais fácil aguentarmos isso com um ordenado ao fim do mês, porque de repente passámos de ter oito ou dez concertos por mês para zero durante meses.» No seu caso, tem conseguido fazer alguns trabalhos de estúdio como produtora, mas o volume de trabalho que tem actualmente representará não mais do que 10 ou 20% daquilo que era habitual: «Talvez 20%, para não ser muito pessimista.

Concertos, zero, e os concertos eram o que ia pagando as contas, porque fazer discos, que é o que eu faço quando falo de produção musical, não paga as contas. Os músicos estão sem trabalho, logo, não têm dinheiro para fazer discos.»

A actual situação veio trazer à luz a precariedade que existe desde sempre no sector, incidindo particularmente nos trabalhadores independentes que pagam os seus impostos, descontam para a Segurança Social e nem sempre ficam com muito rendimento depois disso. Numa altura de crise como esta, a desprotecção laboral pode tornar-se insustentável, como nos disse Patrícia Carvalho: «Os apoios que tem havido não cobrem muitas realidades, e não estou a falar de quem não paga impostos, claro, porque toda a gente tem de os pagar. Há pessoas que não receberam apoio nenhum.» Tendo os apoios da Segurança Social sido anunciados para todos os trabalhadores independentes, pode parecer estranho que tenha havido trabalhadores sem apoio, mas isso explica-se pelas características do trabalho, nomeadamente na vertente técnica associada aos espectáculos e à produção. Alguns destes trabalhadores tiveram de fechar actividade pelo facto de não terem rendimentos, de modo a não continuarem a pagar a Segurança Social. Quando os apoios foram anunciados, no ano passado, percebeu-se que só seriam beneficiados os trabalhadores independentes que tivessem contribuições ininterruptas à Segurança Social. Outros ficaram numa espécie de terra de ninguém pelo facto de terem, para além do seu trabalho como técnicos free-lancer, pequenas empresas, muitas vezes na área do audiovisual. Como empresários, não conseguiram apoio, pelo facto de a sua facturação não atingir os valores definidos para tal, e como trabalhadores independentes, não tiveram apoio porque eram também empresários. A isto, juntam-se os atrasos que prejudicaram técnicos e outros profissionais, como conta Patrícia Carvalho: «No ano passado, os apoios tardaram muito em chegar. Para algumas pessoas, deu para aguentar, porque viviam com outras pessoas, e puderam esperar meio ano ou nove meses por chegar algum apoio, mas quem está sozinho não consegue. Houve pessoas que tiveram de sair das suas casas, de deixar a profissão… E passar a fazer outras coisas não é mau, quando se consegue, porque como isto é muito especializado, as pessoas têm as suas valências e nem sempre conseguem fazer outras coisas.»

Cristovão Cunha é técnico de iluminação, faz desenho de luz e direcção técnica de espectáculos, trabalhando em regime free-lancer. Como tantos outros trabalhadores da área, está à espera: «Tinha espectáculos a estrear agora em Março e houve uma directiva do IGAC que permite que se continue a trabalhar, a ensaiar. Estou nesta situação. Tenho digressões no estrangeiro que foram adiadas ou canceladas e mesmo essas temos direito a receber, mas as próprias candidaturas aos programas de apoio são lentas e não sabemos quando esse dinheiro vai chegar.» A suspensão da actividade torna-se mais difícil de suportar pelo facto de não ser possível apontar uma data para o recomeço. À dificuldade de lidar psicologicamente com essa indefinição, junta-se a questão financeira. Os apoios criados para os trabalhadores independentes mostram-se insuficientes perante a realidade da maioria das pessoas que a eles recorre, como aconteceu com este técnico de iluminação: «Candidatei-me à redução de actividade para os trabalhadores independentes, da Segurança Social. As candidaturas acabaram no início de Fevereiro e o dinheiro, se chegar, é só no fim do mês de Março. No primeiro confinamento recebi esse apoio, mas a verdade é que não é muito. Tenho 3 filhos e a minha mulher tem um contrato de recibos verdes. Conseguimos sobreviver ao primeiro confinamento porque tínhamos algumas poupanças, mas agora, com o novo confinamento, na altura em que pensaríamos começar a recuperar, é voltar tudo à estaca zero. Ou melhor, já é abaixo de zero.»

Independentes ou precários?

Tal como quaisquer outros trabalhadores independentes, aqueles que trabalham no sector cultural tiveram direito ao apoio social concedido aos “recibos verdes”, num valor de 438,81 euros. As medidas excepcionais entretanto anunciadas foram chegando aos poucos e, nas palavras do representante do Sindicato dos Trabalhadores do Espectáculo, Cena-STE, ao Público de 3 de Abril de 2020, eram «pouco claras e chegam tarde aos trabalhadores que podem já estar a ser afectados por situações irregulares na sua actividade».

Maurícia Barreira Neves, bailarina, trabalha como artista independente. Tal como boa parte dos trabalhadores deste sector, foi afectada pelos cancelamentos de todos os espetáculos. A legislação prevê que os espectáculos cancelados sejam pagos, no mínimo, a 50% do seu valor contratado e o que acontece é que há estruturas que cumprem a lei, outras que pagam até 90%. No seu depoimento à Blimunda, a bailarina deixou claro o modo como esta situação se reflecte no seu dia a dia: «Como trabalhadora independente, conto com um certo rendimento por mês.Se esse rendimento é reduzido a 0% ou a 50%, ou nas melhores das hipóteses a 90%, há todo um reajuste financeiro a fazer. Já para não falar em toda a ansiedade, stress e incerteza que a situação gera. Nunca se sabe qual vai ser a prática da instituição que nos contratou. Mais a inquietação de tentar arranjar espaço no calendário para a onda de reagendamentos que muitas das vezes é a única hipótese para obter os 100% com que as minhas despesas estavam a contar. Continuo a trabalhar, mas não estou a receber rendimentos com esse trabalho.» No primeiro confinamento, Maurícia Barreira Neves contou com o apoio da linha de emergência para projectos, mas explicou que é difícil, muitas vezes, recorrer a outros apoios, tendo em conta o modo precário como tantos artistas trabalham: «Os apoios da Segurança Social servem para quem tem a actividade sempre aberta, o que só é possível se houver base financeira para tal. Para quem não tem regularmente trabalho, e que abre e fecha a actividade, estes apoios parecem mais empréstimos bancários, já que exigem 30 meses de fidelização à Segurança Social. Isto é totalmente insustentável para um trabalhador em constante intermitência.»

Há vários casos de actores, músicos e outros profissionais das artes que deixam a nu uma realidade pouco conhecida, que é a de muitas destas pessoas terem de se desdobrar em vários outros trabalhos para poderem prosseguir as suas carreiras artísticas. É o caso de Isabel Mões, actriz e encenadora, neste momento a receber o subsídio de desemprego e impedida, por isso, de recorrer a outros apoios específicos para o sector artístico: «Tive a sorte, na altura, de ter um contrato de trabalho numa pequena empresa que tinha com a minha irmã, e que entretanto teve de fechar. Foi assim que tive o subsídio de desemprego, que são 438 euros mensais, nem sequer é um ordenado mínimo. Por causa disso, estou excluída dos outros apoios todos aos trabalhadores independentes, porque como tive de fechar a actividade, perdi isso. Tive o cartão de compras da GDA [Gestão dos Direitos dos Artistas] por três vezes, no valor de 200 euros, o que deu mesmo muito jeito, porque entretanto o meu filho, que já trabalha, ficou sem rendimento. Entretanto, como tinha algum rendimento do ano passado, recebi agora uma carta para pagar quase 700 euros de IRS, que está em processo executivo, agora suspenso, mas não tenho como pagar esse montante.»

Quando começou o primeiro confinamento, em Março de 2020, Isabel Mões estava a preparar um espectáculo e a iniciar alguns projectos novos. Com toda essa actividade suspensa e sem perspectiva de quando será retomada, há outro problema que começa a fazer-se sentir, como nos disse a actriz: «Os espectáculos começam a estar em fila. Há programadores que já contactei e me disseram que este ano é para esquecer, porque têm coisas que ainda vêm do ano passado. E não vamos fazer os espectáculos apenas uma vez, não me parece razoável para projectos que demoram tanto a preparar e que implicam tanto investimento.» Não parece haver alternativa senão esperar para ver o que acontece, mas adivinham-se tempos complicados para os programadores mesmo depois de a pandemia ser controlada.

O encerramento das salas e recintos de espectáculos não afectou toda a gente do mesmo modo. Mesmo entre os trabalhadores independentes, as situações são muito variáveis, e se há muita gente com a vida complicada pela brusca baixa de rendimentos, também há quem veja os compromissos serem honrados pelas entidades que os contrataram. O actor João Gaspar é um desses casos e disse à Blimunda que continua a receber as verbas acordadas com as companhias com quem estava a trabalhar quando a pandemia começou: «No meu caso, o impacto mais grave foi o cancelamento dos espectáculos e o reagendamento. Quando veio este segundo confinamento, já estávamos com cancelamentos do confinamento anterior e agora anda tudo duas ou três vezes para a frente, o que é muito complicado. Como criador independente, as candidaturas para projectos meus são mais complicadas, porque é difícil fazer qualquer tipo de previsão ou preparação das coisas que têm de ser tratadas para se fazer um espectáculo. Quanto a apoios, concorri ao apoio da Segurança Social nos meses em que não tive rendimento e houve algum atraso, que acho que foi para toda a gente, mas que foi no máximo de uma semana. Funcionou, apesar de tudo.»

Também Catarina Moura, cantora, assegura estar numa situação sustentável, mesmo tendo perdido algum trabalho: «Estou dos dois lados da barricada, como artista e como alguém que dá apoio à programação do convento São Francisco, através da Câmara Municipal de Coimbra, para quem sou prestadora de serviços. Tenho uma avença de um ano, por isso acabo por ter um vencimento fixo, o que ajuda bastante nesta situação em que vivemos.» É um depoimento que confirma a prática de tantos trabalhadores da cultura terem vários trabalhos, umas vezes por escolha, outras por absoluta necessidade. E apesar de isso garantir alguma estabilidade financeira a estes trabalhadores, não impede o inevitável decréscimo de trabalho trazido pela situação pandémica, como confirma a cantora: «Tenho obviamente perda de rendimentos. O ano passado fiquei sem metade dos trabalhos, alguns caíram mesmo, outros foram reagendados.»

Adriana Campos é actriz e arte-educadora, trabalhando em regime independente com várias instituições públicas e privadas. No ano passado, candidatou-se a um financiamento do Fundo de Fomento Cultural, o que lhe permitiu executar um projecto no qual já tinha investido muito e que conseguiu estrear em Dezembro, no Convento de São Francisco, em Coimbra. Para além disso, tem trabalhado com diferentes instituições, da Fundação Lapa do Lobo, com quem fez um programa on-line com vários outros artistas, intitulado Isto Não É Uma Viagem, Mas É Como se Fosse, com o Arte em Rede e com o Museu Municipal de Coimbra. E todas essas instituições, conta a actriz, «cumpriram a sua palavra. Houve quem pagasse adiantado e quem pagasse uma percentagem, cumprindo para além do que estava previsto inicialmente. Isso permite-me neste momento estar numa condição que habitualmente estaria e que possa estar tranquilamente à espera de voltar a trabalhar.» Apesar desta segurança, decorrente do bom cumprimento de todas estas estruturas, Adriana Campos está há vários meses à espera que se resolva uma situação com uma Câmara Municipal, cuja localidade prefere não revelar, que adiou um espectáculo que tinha contratado consigo de Abril para Novembro do ano passado, decidindo depois cancelá-lo. O pagamento que deveria ter acontecido, visto que já havia uma nota de encomenda e que há um artigo legal que obriga ao pagamento dos espectáculos que tenham sido cancelados, nunca teve lugar. Entre telefonemas, emails e cartas registadas sem resposta, Adriana Campos lamenta sobretudo a ética por trás deste incumprimento: «Neste momento, nem sequer é o dinheiro que mais me preocupa, é uma questão de princípio. Estes comportamentos não podem continuar, não podemos servir em determinadas ocasiões para que outros se vangloriem do trabalho que fazem na área da cultura, e depois não cumprirem o mais básico, que é um contrato que estabeleceram connosco. Por acaso, estou salvaguardada, porque essa legislação que obriga a que os contratos sejam cumpridos mesmo que não se realizem estava em vigor no primeiro confinamento, mas quem agora sofre desse problema já não tem essa salvaguarda, porque essa legislação foi circunscrita no tempo e, pelo que percebo, já não está em vigor. Portanto, não faço a mínima ideia de como é que isto vai terminar. E chamo a atenção para isto, porque são políticas ou comportamentos aceites por muitos municípios, é prática comum e isto não está certo.»

Apoio mútuo em tempos difíceis

Logo que o estado pandémico foi decretado pela Organização Mundial de Saúde, iniciando-se o período do primeiro confinamento em Portugal, começaram a surgir grupos que se organizaram para ajudar quem mais precisava. Foi assim que nasceu a União Audiovisual, um grupo de voluntários – a maioria, técnicos que trabalham no sector dos espectáculos – que se juntou para recolher comida e dirigir essa ajuda fundamental para os trabalhadores da sua área profissional. Patrícia Carvalho, produtora musical e uma das dinamizadoras do projecto, explicou à Blimunda que a União Audiovisual nasceu como grupo informal e neste momento já é uma associação devidamente constituída: «Começámos no início da pandemia com meia dúzia de pessoas, a maior parte técnicos da área do espectáculo, e juntámo-nos porque percebemos que toda a gente ficou sem trabalho e que isto não ia recomeçar tão cedo. Juntámo-nos porque percebemos que tínhamos colegas na área do espectáculo, muitos deles até com família, que estavam sem trabalho, no espaço de um mês ou dois deixaram de poder fazer as compras do supermercado e começaram a ter problemas em pagar a renda.»

Todas as pessoas que trabalham na União Audiovisual são voluntárias e não beneficiam dos apoios que vão conseguindo angariar. Neste momento, o grupo distribui cerca de 200 cabazes por semana, o que significa apoio directo a uma média de 800 pessoas, já que muitos dos trabalhadores do espectáculo apoiados têm família. «A maior parte das pessoas que temos ajudado são músicos», diz Patrícia Carvalho. «É claro que a maioria não são os cabeças de cartaz, porque muitos desses têm um pé de meia maior, ou têm outros apoios, e recebem direitos, mas a maior parte são músicos, nem sequer são técnicos. São os músicos das bandas, os instrumentistas, etc.»

A União Audiovisual começou em Lisboa e na Margem Sul, mas rapidamente se estendeu a outros pontos do país, de norte a sul, com passagem pelos Açores. Pouco depois das primeiras recolhas e distribuições de alimentos pelos profissionais do espectáculo com necessidade de apoio, surgiu a Volta a Portugal em Bicicleta, uma acção levada a cabo por Tiago Cação, antigo manager na área da música. Foi o próprio que telefonou a Patrícia Carvalho, dizendo que «queria fazer esta volta a Portugal e angariar um determinado valor por cada quilómetro, revertendo o dinheiro para a UA, para comprarmos alimentos», explica a produtora e voluntária da União Audiovisual. «Na altura ainda não éramos associação e era muito complicado lidar com dinheiro, não podíamos, e eu sugeri-lhe que fizesse a mesma coisa, mas parando em vários pontos do país e fazer uma espécie de recolha ambulante de alimentos. E foi isso que aconteceu durante cerca de uma semana, ele correu o país de norte a sul, e foi incrível, tivemos uma adesão muito grande.»

Muitos meses depois, a organização continua a funcionar, agora trabalhando como associação. Durante o Verão do ano passado, altura em que alguns espectáculos puderam acontecer, a União Audiovisual foi tendo pontos de recolha nos recintos. Para além disso, mantém vários lugares fixos para entrega de alimentos e prossegue o trabalho de reunir os cabazes e fazê-los chegar a quem precisa. Com o segundo confinamento instalado e a actividade cultural ao vivo parada, continuam a ser muitos os trabalhadores do espectáculo a precisar dessa ajuda.

Manter o barco à tona

Suspensos os espectáculos de toda a espécie, muitos espaços associados à música e às artes do palco continuaram a funcionar em regime de serviços mínimos, disponibilizando conteúdos na internet, aproveitando o período de desconfinamento do Verão do ano passado para apresentar espectáculos e mantendo a relação possível com o público através da internet. A maioria destas estruturas contam com financiamento público, através da Direcção Geral das Artes, o que permitiu que, mesmo com o normal funcionamento profundamente afectado, os seus trabalhadores com vínculos seguros não ficassem sem trabalho. Contudo, esta descrição tem pouco de universal, já que cada estrutura tem as suas próprias idiossincrasias. Muitas delas têm trabalhadores com vínculos laborais, mas talvez não todos os que asseguram o trabalho que decorre ao longo do ano. E mesmo que o financiamento assegure o pagamento de salários e o cumprimento dos direitos laborais, não impede a suspensão da programação e as múltiplas consequências que daí advêm.

Uma dessas companhias é a Escola de Mulheres, sediada na Estefânea, em Lisboa, que desde 1995 vem privilegiando, como se lê na sua apresentação, «a criação e o trabalho feminino no Teatro», promovendo e divulgando «uma nova dramaturgia de temática e escrita femininas, quer nacional, quer estrangeira». Ruy Malheiro, que com Marta Lapa assegura a direcção artística da companhia, explicou à Blimunda que o impacto da pandemia e da paragem de actividade se reflectiu, desde logo, na «quebra de receitas próprias provenientes de receita de bilheteira, co-produções, venda de espetáculos ou atividades de formação. Para além da questão financeira, toda a programação ficou comprometida com espetáculos suspensos, outros cancelados definitivamente.» No caso particular da Escola de Mulheres, esse impacto teve como consequência directa a perda de uma co-produção com o Teatro da Trindade que previa um elenco de 12 actores e outros tantos técnicos e criativos. Tentando dar a volta ao problema, explica Ruy Malheiro, «vimo-nos forçados a avançar com uma criação de menor dimensão, tentando salvaguardar alguns dos postos de trabalho. Contudo não nos foi possível assegurar trabalho a toda a equipa, naturalmente, ou seja, a precariedade dos trabalhadores independentes foi agravada também no nosso caso. Com um orçamento muito abaixo do necessário, não conseguimos assegurar contratos de trabalho permanentes, uma realidade cada vez mais rara nas companhias nacionais.»

O Ministério da Cultura, através da Direcção Geral das Artes, assegurou o cumprimento dos contratos assinados com a Escola de Mulheres, do mesmo modo que o fez com as companhias que beneficiam de apoio sustentado em programas de 2 e 4 anos. Dessa forma, explica Ruy Malheiro, «foi-nos possível assegurar todas as despesas fixas (salários, rendas, seguros, eletricidade, comunicações, etc) e manter os trabalhos de criação previstos para o ano de 2020, naturalmente com uma gestão muito atenta, por forma a não esgotar os nossos recursos». Se a pandemia for controlada nos próximos meses, talvez as companhias consigam reagendar os espectáculos cancelados, ainda que esse exercício seja dificultado pelas diferentes proveniências e múltiplos trabalhos de alguns envolvidos, bem como pela relação entre os dias disponíveis e a quantidade de espectáculos que ficaram por fazer. Se assim for, é de prever que sejam estas estruturas as primeiras a conseguirem reerguer-se no sector, assim o público possa voltar às salas.

Um sector por conhecer

Nos diferentes depoimentos que recolhemos para este artigo, houve uma constatação repetida várias vezes, a de que o sector da cultura não está devidamente estudado e compreendido, nomeadamente pelo governo a quem cabe gerir alguns dos seus aspectos fundamentais.

Muitos temas que tem sido levantados por agentes culturais de várias áreas encontraram agora eco nos problemas criados pela paralisação dos espectáculos. Ruy Malheiro, director artístico da Escola de Mulheres, disse à Blimunda que «há questões de fundo que prevalecem, independentemente destas medidas extraordinárias, desde logo a ausência de políticas públicas de cultura, uma dotação orçamental adequada à multiplicidade do sector das Artes e o mapeamento rigoroso de todo o tecido cultural. Urge ainda uma legislação que implemente efectivamente a existência de vínculos laborais formais, que reconheça e valorize salarialmente as profissões do setor, permitindo uma eficaz e digna proteção social.» A questão do mapeamento do sector é uma das reivindicações do Cena-STE, que tem defendido a necessidade absoluta de se conhecer o sector. «O mapeamento seria fundamental para se saber o que se está a passar», diz Rui Galveias, acrescentando que essa é «uma regra em quase todos os países onde há um Ministério da Cultura, ou seja, saber quem somos, quantos somos. Lidamos com realidades de uma disparidade absurda. Por exemplo, há pouco tempo falámos com profissionais da cultura dos Açores e a realidade é de uma violência terrível, a escala dos problemas e a insularidade é incrível. E quando olhamos para os Açores, olhamos também para o interior do país. E esta dimensão, falta, porque o Ministério da Cultura não conhecia o sector.»

A actriz Isabel Mões corrobora essa necessidade, tentando encontrar na actual crise algum aspecto positivo: «A única coisa boa disto tudo é que se percebeu, ou se calhar a opinião pública percebeu de uma maneira mais real, os problemas que este sector enfrenta, a tal desprotecção. Os grupos associativos, as estruturas e o sindicato estão a fazer cada vez mais pressão para serem resolvidos problemas de base, que já deviam ter sido resolvidos há muito tempo. Mas isto tudo passa pelo financiamento, porque se não houver financiamento efectivo, nenhuma companhia consegue ter ninguém a trabalhar com contrato de trabalho, porque não há dinheiro para pagar a TSU das pessoas, porque não sabemos se para o ano vamos ter dinheiro.» A imagem mediatizada de actores e músicos imediatamente reconhecidos pelo público esconderá muitas realidades que não cabem na ideia idealizada que talvez ainda prevaleça sobre o trabalho artístico, ou porque o mede pelo pouco palpável critério da fama (e reconhecimento público não implica necessariamente elevado rendimento ou sequer protecção laboral), ou porque ignora as muitas camadas de que se faz o sector artístico.

Sublinhando a ideia de que o Ministério da Cultura não tinha noção das muitas realidades do sector, Rui Galveias acredita que esta crise poderá contribuir para corrigir essa falha: «É a única coisa boa de tudo isto que nos aconteceu, isso e a percepção, para dentro e para fora, sobretudo para fora, de que isto é um trabalho e de que as pessoas têm uma vida normal, têm vivências, têm filhos, têm de levar os filhos à escola. A questão da realidade de um trabalhador da cultura não se demite da realidade em que vive. O trabalhador da cultura trabalha muitas vezes à noite e parece que é uma vida diferente, mas é trabalho nocturno, e às sete da manhã esse trabalhador está a levantar-se para levar os filhos à escola, porque não há uma escola nocturna para os filhos dos artistas. E fazendo o trabalho nocturno, continua a ter de manter a ligação à sociedade em que está integrado. É interessante a discussão que surgiu a partir deste problema todo e vamos ter esperança que o que fique disto tudo, apesar das dificuldades e das consequências terríveis que isto está a ter para toda a gente, seja um grande momento de aprendizagem para mudar coisas que não podem continuar a acontecer. As pessoas têm de estar protegidas, têm de ter protecção social, têm de ter condições para sobreviver numa situação extrema como esta.» Independentemente do palco ou da visibilidade que este pode trazer, a necessidade de garantir pão na mesa e alguma dignidade na vida quotidiana é a mesma para toda a gente.