Em junho de 1989, José Saramago escreveu para o jornal espanhol El País uma crónica onde conta sobre uma viagem que fizera a Hamburgo, na Alemanha, e as reflexões que aquela paisagem lhe provocaram. O texto, inédito em português, é agora recuperado neste número da Blimunda.
Os insectos felizes de Hamburgo
José Saramago
Quando, há alguns meses, recebi convite para viajar até Hamburgo, onde, por iniciativa da Universidade, se ia realizar um encontro de escritores de língua portuguesa e espanhola, figurei-me na imaginação uma magna assembleia debatendo ardorosamente, como se deveria esperar de tão caldeados salgues,
fortíssimas questões de identidade e de procura, de afastamento e vizinhança, de compreensão e ignorância, de palavra franca e reserva mental – todo o emaranhado irritante que mantém em estado de permanente adiamento uma aproximação que, no interesse destas culturas, deveria estar concluída e em plena frutificação. Enganei-me duas vezes: primeiro, porque os autores convidados nunca chegaram a reunir-se todos – vinham, diziam o seu recado e partiam; segundo, porque o recado dito e deixado, no geral, contemplava obsessivamente a obra de cada um e quase nada o interesse colectivo. Não culpo ninguém, a não ser a minha ingenuidade, que põe longas esperanças em realidades de curto alcance. Afinal, a Universidade de Hamburgo a mais não estava obrigada, se os directos interessados tão pouco vêm fazendo para se entenderem pelos seus próprios meios.
Felizmente, o calendário foi organizado de modo que ainda puderam encontrar-se escritores brasileiros e portugueses. Participámos em sessões conjuntas, entrámos em debates, apoiámo-nos uns aos outros, rimos, folgámos e bebemos, na hora da discussão não dramatizámos as divergências – em verdade vos digo, estimados leitores, que entre portugueses e brasileiros só por má-fé e cínica estratégia se instalará a discórdia. Guardo de Hamburgo e dos amigos lá encontrados ou reencontrados uma lembrança que não se apagará. Recordo a hora do café da manhã, no hotel, com o sol a entrar pelas janelas triunfalmente. Ao redor da mesa não faltavam rugas e cãs, mas o riso dos novos não soava mais alto nem mais alegre do que o dos veteranos, que, por terem durado mais, tinham a vantagem de conhecer mais histórias e casos, vividos ou alheios. Não é preciso muito para ser feliz, e eu posso garantir que fomos todos naqueles preciosos instantes.
Mas o mundo existe lá fora – e grita. De repente ouvimos um uivo lancinante, um clamor de besta ferida de morte, um berro agónico de mastodonte a afundar-se no pântano sabendo que ninguém o pode salvar. Arrepiou-se-nos carne e cabelo, preguntámos que é aquilo, e responderam-nos que eram as sereias do alarme atómico, duas ou três vezes por ano são experimentadas para haver certeza de que não falharão quando chegar o dia do trovão nuclear. O grito prolongou-se por um tempo que pareceu interminável, o café tornou-se subitamente amargo, o pão era feito de cinzas, e o nosso pobre riso esmoreceu como um pavio a que fosse faltando o azeite. Um de nós quis, heroicamente, levantar os ânimos, mas alguém acrescentou outra informação, que no conjunto das duas Alemanhas existem dez mil mísseis, quatro mil na República Democrática Alemã, seis mil na República Federal da Alemanha, e que ali ninguém tem dúvidas de que, em caso de guerra nuclear, os alemães serão os primeiros a desaparecer da face da Terra. As sereias calaram-se, enfim, o rumor da cidade ouviu-se outra vez, nós recomeçámos a conversar, agora em tom menor, dando tempo à esperança para juntar os pedaços estilhaçados. A voz de Lygia Fagundes Telles contava: “Um dia tive um gato…”, e nós sorrimos de expectativa, não há dúvida, ainda estamos vivos.
Saímos para a rua, e pelos olhos dentro se mete a evidência de que Hamburgo é uma cidade rica, limpa, ordenada, não se vê um papel no chão, uma ponta de cigarro, uma lata vazia de cerveja. As pessoas vestem bem, talvez demasiado bem, pois o que trazem no corpo dá a ideia de ter sido retirado agora mesmo da vitrina da loja, o gosto é perfeito mas impessoal, excluiu-se a possibilidade do erro, o figurinista disciplinou a aventura e a imaginação. Atravessamos um parque no meio da cidade, à nossa frente salta sem pressa um coelho, nem olha para nós, e não é nenhum fenómeno, agora são três coelhos, e vêm mais. Estamos na terra da abundância, em Portugal estes bichos já estariam a guisar na panela. Vamos andando, e subitamente damo-nos conta de sinais que sugerem imperdoáveis desleixos, jardins onde a erva cresce como se tudo por aqui fosse charneca ou sertão, as próprias caldeiras das árvores estão inçadas de ervaçais bravios. Dizem-me que em Hamburgo é mesmo assim, em Hamburgo deixa-se crescer a erva por mor da ecologia, os insectos precisam do seu habitat, é preciso respeitar e defender a natureza. Eu penso: “Estes alemães são uns sábios”, e suspiro de inveja.
No dia seguinte saberei que dentro de vinte anos terão desaparecido quase todas as florestas da Alemanha, envenenadas pelas chuvas ácidas. Quanto às sereias do alarme atómico, voltarão a ser experimentadas daqui a quatro meses.