Saramaguiana
por Sibelle Pedral e Jurandyr Passos 14 Junho 2022
José Saramago no Sesc Pinheiros, em São Paulo, durante a apresentação do livro “As Intermitências da Morte”, em 2005
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“Acredito que as circunstâncias podem muito mais do que a nossa vontade”

Em maio de 1988, José Saramago foi ao Brasil para lançar o seu romance A Jangada de Pedra e participar num congresso internacional de Estudos Pessoanos promovido pela USP (Universidade de São Paulo). Na ocasião deu uma entrevista ao Jornal da Tarde em que se falou sobre oportunidades, circunstâncias e destino. A Blimunda recupera essa conversa conduzida por Sibelle Pedral e Jurandyr Passos.

Na sua vida, o senhor exerceu diversos ofícios. Isso é reflexo de um espírito inquieto, que se pode refletir na sua literatura?

Eu não tenho um espírito inquieto, nunca tive e, se fui serralheiro mecânico nos meus 18, 19 anos, foi porque não tinha outra maneira de ganhar a vida. E, depois, as minhas passagens por diversas atividades – foi funcionário dos Hospitais de Lisboa, de uma empresa metalúrgica, de um organismo de assistência social, por fim diretor literário – não resultam de um espírito aventureiro, mas das circunstâncias. Eu acredito que as circunstâncias podem muito mais do que a nossa vontade, a questão está em aproveitar as circunstâncias para exercer as vontades. Não se trata de ver em mim um espírito aventureiro que foi passando de profissão em profissão por insatisfação, nem por sede de conhecimento, sempre fui muito mais pacífico do que isso. Ao longo de todo esse tempo e todas essas atividades, vinha aproximando-se, sabendo ou não, do que realmente me interessava. Num certo momento da minha vida fui parar numa editora, achei-me no lugar onde os livros são feitos. É como se fosse um conjunto de pequeninos riachos, regatos, que acabam por fazer um riozinho que é o que está correndo agora.

Por que foi tão importante para a sua carreira como escritor ter ido para Lisboa?

Embora eu não tivesse nunca frequentado as universidades, Lisboa é um meio onde há livros, onde se pode ir a bibliotecas, encontrar um escritor com quem se pode trocar ideias, onde se pode criar pouco a pouco um cabedal de conhecimentos, entrar por estas áreas a que chamamos cultura – o que não poderia ser feito na aldeia de onde vim, com suas 400 pessoas, em sua maioria trabalhadores rurais. Não que eu seja diferente deles. Mas estamos falando de circunstâncias e oportunidades. Afinal, sabemos quantos escritores há, mas não sabemos quantos poderia haver se as circunstâncias tivessem permitido.

O senhor disse certa vez que o povo português é um povo distante de sua História. Nesse instante em que A Jangada de Pedra retoma a relação de Portugal com o Terceiro Mundo – principalmente América Latina e África – como vê o povo brasileiro?

Não conheço bastante bem o povo brasileiro para decidir se é ou não indiferente à sua História. Apenas tenho pequenas ideias. Creio que um dos problemas históricos do povo brasileiro é não saber exatamente onde começa a sua História. Se se decide assumir toda a cultura de língua portuguesa, e se o povo brasileiro o faz, isso é uma atitude perante toda a história e perante toda a cultura. Por outro lado, se considera que a cultura brasileira não tem mais tempo do que a partir do momento em que se constitui país independente, então há uma cultura anterior da qual o povo brasileiro se corta ou é cortado. E que talvez fosse importante não cortar. Que significado pode ter para o povo brasileiro, por exemplo, os cancioneiros medievais? Eu penso que, por a língua dos brasileiros ser a portuguesa e por os cancioneiros estarem nos alvores da língua, deveriam ser igualmente importantes. Esta é uma escolha que tem que ser feita. E isso que se diz do Brasil talvez se pudesse dizer com mais razão de Angola e Moçambique, cujos dirigentes são produtos culturais da língua portuguesa, e que têm que decidir se rompem com tudo aquilo que os constituiu e começam outra coisa ou, o que me parece mais lógico e culturalmente mais produtivo, assumem, nas suas condições próprias, a cultura portuguesa em relação ao tempo anterior à constituição das próprias nacionalidades indistintamente. Se o Brasil começa culturalmente com o Grito do Ipiranga e renuncia a tudo que está para trás, faz com isso um Brasil, sempre do ponto de vista cultural, menos rico e harmonioso.

A Jangada de Pedra está sendo lançada no Brasil num momento em que Portugal vive um instante feliz com o ingresso na Comunidade Econômica Europeia. O senhor critica esta postura, mas, por outro lado, reconhece uma série de dificuldades que o Brasil vem enfrentando. Ao se voltar para a Europa, Portugal não estaria pensando apenas no seu próprio desenvolvimento econômico?

A Jangada de Pedra resulta de uma visão pessoal, não de uma política de curto prazo, que é o que imediatamente se vê – Portugal integrado à CCE. Penso que devemos tentar ver um pouco mais longe. Os políticos portugueses que neste momento levam Portugal à CCE não veem alem do ano 2000, e eu talvez esteja tentando ver no ano 2050. E, apesar das terríveis dificuldades e dos conflitos sociais gravíssimos, continuo a pensar que não é este o destino da América Latina. Este é o momento de passagem difícil. E devemos pensar que a Europa, que hoje se apresenta como um modelo de paz e concórdia, também passou por momentos difíceis. As duas grandes guerras não foram no século XV, foram neste século. A América Latina e África não serão sempre o que são hoje. Isso é transitório, como tudo. Digamos que A Jangada de Pedra antecipa o momento em que o trabalho é dignificado, acabou-se a miséria na América Latina e enfim se projeta um futuro feliz. A Jangada de Pedra é apenas um romance, não uma tese, mas de qualquer maneira pretende dizer isso.

Qual é a situação do marxismo nos dias de hoje?
Penso que o marxismo está atrasado em relação às transformações por que passou o mundo, quer dizer, ter-se-á mantido numa certa situação fixada no tempo e vai ter que recuperar o tempo em que não considerou as mudanças que ocorriam no mundo. Não quero dizer que não tenha considerado todas as mudanças, mas talvez não tenha havido atenção suficiente e se tenha criado um corpo de doutrina que a certa altura se tornou lento na apreciação dos fatos. Agora há que se recuperar o tempo que não se aproveitou, mas penso que o marxismo tem em si todos os instrumentos e capacidades para esta revisão e readaptação.

Como o senhor vê a Glasnost nesse processo?

Glasnost era algo vitalmente necessário e de certa maneira se pode dizer que, se for levada adiante a reestruturação que se iniciou na URSS, esta pode ser uma revolução quase tão importante quanto foi a outra.

No Memoria do Convento o senhor trata com bastante ironia, mas ao mesmo tempo se refere a ela com bastante frequência. Afinal, como é o seu relacionamento com a religião?

O meu relacionamento com a religião é nenhum, eu sou ateu. E sou desde sempre, nunca fui à missa, nunca recebi nenhum dos sacramentos. Se estatisticamente estou incluído no mundo dos cristãos, é porque fui batizado, como no meu tempo se fazia. Mas não posso ignorar que a religião exista. Não posso nem devo esquecer que religião católica é o fabricante de todos nós, do nosso ser moral e do nosso ser mental. É dela que parte toda a ideia do pecado, que ainda nos marca e que é a mais extraordinária invenção dentro da Igreja para conduzir as consciências. Se eu trato, como no Memorial, da Igreja Católica, que na época em que se passa a história tinha grande influência, é da Igreja que falo, não do cristianismo. E trato-a com ironia porque não posso levar a sério a Igreja, tendo em vista os instrumentos e os enfeites de sua ação. Quando se crê, tudo está justificado a partir da crença. Mas, quando não se crê, não se pode encontrar uma justificativa, ao menos no plano espiritual. A minha atitude perante a Igreja, sempre que tenho que tratar dela, é bastante tensa, apesar do respeito que tenho pela crença que cada pessoa possa ter no seu Deus. Mas repito que isso para mim não tem qualquer significado. E posso como escritor tratar não o crente, mas o objeto da sua crença, de maneira irónica. 

O senhor concordaria com Fernando Pessoa, que disse que não acredita em Deus, porque não o viu, mas que se o visse o levaria à casa e trataria bem?

Deus perde uma grande oportunidade de nos converter a todos. Basta aparecer. E não vale a pena dizer que já cá esteve, porque se é verdade que o fez e com isso fundo o cristianismo, usou de condições tais que dificultou a conversão das pessoas. Se Deus aparecesse, primeiro teria que me convencer que era Deus; segundo, eu teria que acreditar. Incluo-me de facto entre os cépticos radicais. Enquanto as provas não forem aceitáveis, continuo a dizer que, ao contrário de Fernando Pessoa, eu poderia levar (à casa) um homem, sentá-lo à mesa. E é lamentável que Fernando Pessoa não tenha escrito estes versos não sobre Deus, mas sobre um homem, que pudesse levar também à sua mesa, dar-lhe vinho, pão e rosas.