Leituras para acabar com o racismo
Dois livros recentemente traduzidos para português contribuem para o debate urgente sobre o racismo que nos estrutura, ajudando a pensar sobre caminhos para o seu fim.
É um título a apontar para a utopia, este que aqui se escolhe, mas tem um fundo de possibilidade guardado nessa ideia de que ler permite pensar, discutir, questionar (os outros e a nós próprios), inventar outras formas de estar no mundo. Nos últimos meses, dois livros que guardam em si todo esse potencial chegaram às livrarias portuguesas:
Medo da Consciência Negra, de Lewis Ricardo Gordon (Objectiva) e
Para Uma História Política da Raça, de Jean-Frédéric Schaub (Tinta da China). Em diálogo com alguns outros volumes que já por lá andavam, uns mais recentes, outros nem tanto, são um ponto de partida possível e extremamente rico para olharmos para o tema do racismo. E, de caminho, para nós, para o modo como vivemos em comunidade, para as tantas formas de exclusão dessa comunidade que alimentamos diariamente.
Os dois livros são assinados por académicos: um historiador, Jean-Frédéric Schaub, e um filósofo e politólogo, no caso de Lewis Ricardo Gordon. A uni-los, para além do tema e de algumas das abordagens, está a vontade de escrever para um público mais vasto, não especializado nos meandros dos estudos históricos, sociais e políticos sobre a ideia de raça e o racismo, mas necessariamente interessado no tema e nas suas actualizações mais recentes. São, se quisermos encontrar-lhes um ponto comum, livros que não partem daquele princípio paternalista de que o grande público não tem como compreender os estudos complexos e baseados numa linhagem (ou em várias) de estudos anteriores que vão marcando aquilo a que chamamos academia. Pelo contrário, os dois autores escrevem a partir dos seus domínios de estudo, confirmando que as ciências sociais e humanas têm inevitavelmente de encontrar o seu lugar noutros fóruns de debate para além da academia para poderem jogar o seu papel, absolutamente essencial, no espaço comum que habitamos.
Em Medo da Consciência Negra, Lewis Ricardo Gordon começa o seu percurso pelas discriminações raciais no presente, destacando o impacto que o homicídio de George Floyd, com o pescoço preso e o fluxo de ar interrompido debaixo do joelho de um polícia teve na consciência de o racismo é uma questão estrutural. Cruzando experiências pessoais com leituras académicas, o autor vai avançando no seu objectivo de demonstrar que «existe um movimento de uma consciência negra sofredora para uma consciência Negra libertadora, na qual a revelação de todos os segredos e o embuste da supremacia branca e da inferioridade negra é uma verdade temida.» (pg.30) Não se pense que a troca da minúscula pela maiúscula é mero preciosismo de linguagem, nem se desconfie demasiado do tom quase messiânico. Gordon não teme usar a ironia e nem por isso se afasta do rigor de um pensamento estruturado a partir de muitas leituras, todas elas devidamente referenciadas. O embuste é claro, ainda que não seja unânime, e boa parte deste livro dedica-se a revelá-lo. Entre mitificações sobre a boa conduta de quem acredita não ver a cor das peles alheias e discursos abertamente xenófobos e supostamente científicos que ajudaram, historicamente, a enquadrar atitudes mais isoladas ou mais estatizadas relativamente a quem não tem a pele clara, o leitor vai-se confrontando com o mundo em que vive e, tantas vezes, com o seu próprio descanso relativamente ao modo como o faz. Isto, claro, assumindo que o leitor é branco, essa categoria que inventámos para afirmar uma suposta superioridade – biológica, intelectual, mas também moral e social. Como todos os livros relevantes, Medo da Consciência Negra não define as características de quem o lê, e nesse sentido, não discrimina, mas do lado de cá das páginas, é inevitável não pensar que a cor da pele do leitor ou da leitora ajudará a definir o modo como recebe este texto.
Avancemos por aí, então, sem medo de usar as palavras. Como bem explica o autor, parecendo que vai replicar o discurso dos bem-intencionados que dizem não ver cores de pele, os povos a que chamamos negros descobriram-se enquanto tal por oposição – perceberam-se negros quando foram obrigados a perceber que existiam outros povos que se intitulavam brancos: «Os negros foram fabricados a partir das forças e trepidações que criaram os brancos.» (pg.68) Claro que outras oposições já existiam, criando as inevitáveis separações, classes e discriminações que sempre fizeram girar a roda humana, mas é a partir dos avanços colonizadores que o mundo descobre que há brancos (quem coloniza trata de o afirmar alto e bom som, e nesse capítulo, o contributo português foi infelizmente fundamental) e, depois, há todos os outros, sempre vistos em oposição.
Ou seja, há um mundo, que se acredita civilizado, com tendência para o desenvolvimento, superior, e depois há o resto do mundo, onde as pessoas são negras, mesmo que também possam ter a pele avermelhada ou num tom mais próximo do que vemos como amarelo. Nessa mundividência assente na discriminação, uma pessoa negra não tem necessariamente a pele escura, mesmo que diferentes graus de melatonina exacerbem, muitas vezes, diferentes graus de discriminação; para aquilo que conta do ponto de vista estrutural, uma pessoa negra é sobretudo não-branca e é daí que temos de partir se quisermos construir outro mundo.
De onde vem o racismo?
Colocar nos processos expansionistas e de colonização o início único desta história pode ser redutor, na medida em que implica ignorar discriminações muito anteriores ou conflitos em que as diferenças visíveis a olho nu, e outras que derivavam da religião ou de certas práticas comunitárias, foram argumento para contendas várias. É a análise dos processos históricos e das mudanças que vão acontecendo e afirmando a sua estruturalidade nas sociedades que propõe Jean-Frédéric Schaub. Em Para Uma História Política da Raça, o autor analisa criticamente diferentes teorias históricas sobre o nascimento e o desenvolvimento da racialização, e se não retira à chegada dos conquistadores brancos ao chamado Novo Mundo o seu papel fulcral na imposição de uma ideia de diferença racial que acabou por definir a Modernidade (e que ainda hoje prevalece, de modo estrutural), também não esquece cronologias e geografias anteriores que guardam uma semente comum.
Diz Shaub: «O esforço intelectual de ligar diferentes fontes de racialização é, contudo, a opção mais fecunda.» (pg.94) E a partir desta assunção, cita o filósofo e jurista Eric Voegelin e o seu texto de 1933, onde refere a discriminação anti-semita, bem como o historiador Francisco Bethencourt e os seus estudos sobre a segregação e a conversão forçada de várias comunidades religiosas no espaço europeu cristão, durante o final da Idade Média e o início do Renascimento. Com o início das conquistas territoriais europeias por via marítima, estas discriminações, que já propunham uma diferenciação biológica e mental, vão somar-se ao grande movimento de racialização das populações negras e indígenas: «A história desses processos descreve as maneiras pelas quais se atribuíam às populações diferentes identidades (alteridade) compreendidas como diferenças naturais (biológicas). (…) Para cada um destes grandes tipos de clivagens, descobre-se que a reputação negativa, cuja origem é, claro está, sempre social, acaba por se tornar um elemento constitutivo da natureza de pessoas e comunidades discriminadas.» (pg.97)
Para lá dos processos históricos que foram impondo uma ideia de diferença, racializando pessoas e definindo espaços sociais onde umas e outras eram ou não aceites, quer o livro de Schaub, quer o de Gordon deixam clara a constatação central que permite analisar a questão do racismo de um modo sério. Essa constatação é a de um racismo estrutural, que mesmo que possa ter na sua origem reacções xenófobas individuais, se instalou como modo transversal de domínio, segregação e referência.
O racismo estrutural não é uma patologia social individual, aquele gesto xenófobo que discrimina o diferente e que pode, na origem e no alvo, vir de qualquer lado: alguém de pele clara que aponta para uma pessoa de pele escura e diz “aquela é diferente de mim”, despejando-lhe em cima todos os receios. O racismo estrutural parte de uma ideia de neutralidade da pele branca, e ruma em direcção à vigilância, dominação e discriminação de todas as pessoas não percepcionadas enquanto brancas. Claro que a própria ideia de branquitude depende mais de uma percepção social de privilégio, que importa manter a todo o custo, do que de cor propriamente dita: um europeu muito moreno será sempre branco, pelo menos no espaço europeu (na verdade, poderá ser percepcionado como não-branco noutros lugares, como a América, o que talvez cause uma estranheza apenas explicada pela total ausência de um privilégio pleno no que toca ao olhar dos outros). Essa ideia de neutralidade não nasceu com a espécie humana, cujos primeiros exemplares deviam ser muito pouco brancos… Como explica Lewis R Gordon, «nem sempre houve negros, na forma como as sociedades racistas nos compreendem; nem sempre houve brancos.» (pg.68) Talvez por isso tantas pessoas incapazes de um gesto violentamente racista, mas ainda assim dispostas a confundir gestos individuais com estruturas sociais, insistam em negar o racismo, quase sempre dizendo que não vêem cor. Em Medo da Consciência Negra, Gordon disseca com paciência, pedagogia e algum humor o absurdo desta suposta cegueira cromática, deixando-nos a pensar que é bem possível que o problema de quem a reclama seja uma incapacidade de ver a própria cor, inevitavelmente branca e naturalmente portadora de um privilégio que parece ser muito difícil de assumir. E, sem o assumir, é fácil manter tudo como está.
Outras leituras
Sei Porque Canta o Pássaro na Gaiola
Maya Angelou
Antígona
Tradução de Tânia Ganho
Num registo de memórias, Maya Angelou traça um percurso pela sua infância e juventude norte-americana, nos anos 30 a 40 do século passado, registando a violência e o racismo, mas também os alvores de uma consciência que acabará por se abrir, com o avançar do tempo, à luta pelos direitos humanos, contra a segregação e pela emancipação.
Pensamento Branco
Lilian Thuram
Tinta da China
Tradução de Susana Sousa e Silva
Assinado pelo activista e ex-jogador de futebol Lilian Thuran, este é um livro que vai construindo pensamento sobre o modo como o racismo se estruturou, mas também sobre como reagimos a ele, tantas vezes sem consciência da sua existência. Como diz o autor, «não se trata de culpabilizar ou de acusar, mas sim de compreender os mecanismos do pensamento branco, de estarmos conscientes e construirmos novas formas de solidariedade.»
Crítica da Razão Negra
Achille Mbembe
Antígona
Tradução de Marta Lança
De um autor fundamental nos estudos pós-colonialistas, este livro aborda a evolução do pensamento racial na Europa, resgatando o conceito de Negro e de homem-mercadoria, analisando o modo como as políticas racistas e o neo-liberalismo convergiram para converter as pessoas negras no paradigma de uma humanidade subalterna.
Pele Negra, Máscaras Brancas
Frantz Fanon
Letra Livre
Tradução de Alexandre Pomar
Um dos mais importantes manifestos contra o racismo e o colonialismo, Pele Negra, Máscaras Brancas é um livro fundamental para pensar e discutir o racismo e o impacto da escravidão nas sociedades pós-coloniais.
O Estado do Racismo em Portugal
VVAA (coord.Sílvia Rodrígues Maeso)
Tinta da China
Num estudo essencial para compreendermos a sociedade portuguesa e o racismo estrutural que a sustenta, este volume colige textos de vários autores ,identificando e analisando as práticas quotidianas que promovem a ordem racial anti-negra e anti-cigana em diversos contextos da sociedade portuguesa.
Dicionário da Invisibilidade
VVAA
SOS Racismo
Com colaborações de mais de 170 autores e ilustrações de André Carrilho, o Dicionário da Invisibilidade reúne perfis de mais de três milhares de protagonistas que a história tentou tornar invisíveis, mas que ainda assim estiveram na linha da frente de muitas lutas sociais e foram responsáveis por mudanças fundamentais.