Em 1991, José Saramago recebeu em Turim o seu primeiro doutoramento Honoris Causa. A amizade com Giancarlo Depretis e outros académicos da Universidade de Turim começara em 1989, na sua primeira visita à cidade, e prolongou-se no tempo até ao final da sua vida. Foi em Turim, em 1997, onde José Saramago proferiu o discurso Da Estátua à Pedra, publicado posteriormente em formato de livro. Giancarlo Depretis morreu no começo deste mês, aos 79 anos. A Blimunda publica um texto de Pilar del Río, presidenta da Fundação José Saramago, em homenagem ao amigo *.
Giancarlo, um amigo
O professor Giancarlo Depretis, quando chegava a Lisboa, punha de lado todos os títulos académicos e, usando apenas o seu nome e a sua curiosidade, aventurava-se pela cultura portuguesa, como se para isso tivesse nascido. Giancarlo visitava museus e igrejas, não perdia um concerto e em todas as livrarias tinha um amigo que lhe dizia o que se tinha publicado recentemente e qual a melhor edição literária de sempre. Era um grande leitor, ainda que disso não fizesse alarde, sabia perder tempo em conversas intermináveis, provava vinhos e bacalhaus com a avidez de um principiante e a sabedoria de quem tinha visitado adegas e zonas de pesca. Para Giancarlo, a vida não era nem um castigo, nem uma maldição, tirava partido das pedras da calçada, do sol e da chuva. Era extremamente gentil, amável e generoso. Era um amigo.
Giancarlo morreu e a cultura portuguesa perdeu um embaixador. Pela Universidade de Turim passaram escritores de várias gerações, a quem punha a dialogar com jovens que consideravam Portugal um país exótico. Aproximava-os da cultura portuguesa com a energia que lhe era própria: nem as fronteiras resistiam à sua capacidade de sedução, daí a sua Faculdade não ser a de Estudos Estrangeiros, como erroneamente dizia o nome, mas um lugar de encontro entre pessoas de diferentes procedências e capacidade para entender o que outras escrevem, pintam e compõem, esse milagre humano que é a criação e o pensamento, que nos distingue dos outros seres vivos que pululam a Terra.
Ao longo da sua vida, Giancarlo foi acumulando afetos e mestres. A professora Luciana Stegagno Picchio, tão querida em Portugal, rasgou caminhos e ele seguiu-os até um dia começarem a tratar-se como colegas e desse tratamento nunca mais saírem.
Para a sua formação, também contribuiu aquele que seria o seu companheiro de docência e de vida, Pablo Luís Ávila. Juntos, pareciam indestrutíveis, mobilizavam a universidade e chefes de estado, enquanto davam aulas, traduziam e tomavam um whisky ao entardecer, que a vida também é para ser desfrutada, não é só trabalho.
O Presidente Mário Soares e o escritor José Saramago foram investidos Doutores Honoris Causa juntamente com o poeta espanhol Carlos Bousoño: de alguma forma, a península ibérica viajou até Turim, a Aula Magna e outros recintos institucionais foram lugares de celebração do entendimento entre culturas, possível devido ao empenho dos professores Avila e Depretis.
Mais tarde, recordar-se-ia em Turim Antonio Machado, o grande poeta nascido em Sevilha e que era “en el buen sentido de la palabra, bueno”. Teve lugar um congresso solene, “Antonio Machado no caminho da Europa”, e a música, não podia deixar de ser, pô-la Lopes Graça, devoção de Giancarlo, o maestro que sabia tanto de poesia e com quem conversava nas tardes da Ericeira, em casa de Carmélia, com amigos disponíveis para avançar, nunca presos no que foi presente e já não é.
Por aqueles salões ao ar livre da Ericeira, passaram escritoras e escritores, professores, cineastas, compositores, cantores e editores. Naqueles encontros nasciam livros, intercambiavam-se iniciativas e Giancarlo era sempre o mais ousado. A morte levou-o quando trabalhava na poesia de António Botto, paixão literária e curiosidade humana por um criador tão singular e tão corajoso. A tradução para italiano de Canções ficou a meio, não a leitura profunda que Giancarlo fazia da obra e que ao final da tarde comentava com os amigos portugueses, via WhatsApp.
Giancarlo, o professor Depretis, deixou demasiados amigos órfãos da sua voz, deixarão de entrar pelas casas de tantos intelectuais europeus os emails coletivos que lançava ao vento, o último, neste 25 de abril, desejando para Itália e Portugal “fascismo nunca mais”, nem os restaurantes lisboetas que o esperavam com admiração e assombro disfrutarão mais da sua presença, a familiaridade que deixava por onde passava era um estímulo, que agora se perde e perdemos.
Ficarão, é verdade, os seus livros, as conferências de autores que organizou e publicou em belos livros, continuará a ouvir-se o eco do seu riso e o afeto inquebrantável pelos seus amigos e pela cultura portuguesa. Dizem que em matéria de coração, a morte não manda. Se é assim, Giancarlo voltará a aparecer muitas vezes nas nossas vidas, e será sempre para bem.
* Texto originalmente publicado no Jornal de Letras, Artes e Ideias.