Saramaguiana
por Olga Rodríguez 18 Junho 2021
Há 11 anos, no dia 18 de junho de 2010, José Saramago faleceu. Após ser velado na biblioteca d’A Casa, em Lanzarote, o corpo do escritor foi trazido a Lisboa. Durante todo o percurso na capital portuguesa os leitores despediram-se de Saramago com livros nas mãos. A jornalista espanhola Olga Rodríguez esteve em Lisboa, acompanhou o funeral do Prémio Nobel de Literatura e escreveu um texto que a Blimunda recupera agora, em forma de homenagem.

E o fenómeno estendeu-se pelos cinco continentes

Foi um domingo soalheiro. Na Câmara Municipal da cidade dava-se o último adeus a um escritor português, Prémio Nobel de Literatura. Milhares de pessoas desfilaram perante a câmara ardente. As onze entrou a violoncelista, vestida de vermelho. «Vermelho, como ele era», contou a viúva que a intérprete lhe dissera. Ouviu-se Bach.

Na rua, a multidão aplaudia e soluçava. Uma mulher ergueu um livro do escritor falecido. Foi um gesto espontâneo. Nesse instante, outros a imitaram e assim surgiram no alto dezenas de títulos do defunto acompanhados de cravos vermelhos.

Um homem de aspecto humilde levantou um exemplar de capas amarelas: uma rajada de vento folheou-lhe as páginas e deixou a descoberto marcas de uma conversa imaginária entre leitor e autor através de apontamentos nas margens, linhas sublinhadas, folhas gastas. Quando o féretro se encaminhou para o cemitério, agitaram-se ao alto livros e flores ao com passo de uma tristeza colectiva. Os que ali estavam presentes viveram tudo com muita emoção.

Chegou a segunda-feira. Os leitores estiveram todo o dia desolados, cabisbaixos. Mas houve uma mulher, talvez chamada Pilar, que saiu à rua com um cravo vermelho porque sentia necessidade de continuar a prestar homenagem ao escritor. Ao dobrar uma esquina cruzou-se com um rapaz que, ao vê-la com a flor, puxou de um Ensaio sobre a Lucidez.

Não se conhecem ainda os pormenores do contágio, mas a verdade é que duas horas mais tarde milhares de pessoas mostravam cravos e livros do escritor português nos seus trajectos de casa para o trabalho ou do trabalho para casa, no metro, nos cafés ou esplanadas. Quando os portadores se reconheciam, sorriam e prosseguiam o seu caminho. Alguns até paravam a conversar uns segundos: «Que bom partilharmos a nossa paixão por estes romances>>, diziam uns; «Que pena o autor já nos ter deixado», comentavam outros.

O fenómeno estendeu-se pelos cinco continentes. Um jornalista perguntou a um anónimo com um livro erguido que tipo de contra-senha era aquela e o anónimo respondeu que se tratava de um modo de recordar o escritor e de partilhar com ele a sua indignação perante a cegueira, a desigualdade, a injustiça e o incumprimento dos direitos humanos. «Sou uma cidadã responsável e como tal indigno-me perante o mundo actual», fez ela notar.

Um jornal no dia seguinte trazia o título: «Livros e cravos vermelhos incitam à rebelião» e, para surpresa de muitos, o manto de flores e livros cresceria ainda mais, inundaria povoações, urbes, montanhas, vales e praias.

As fotografias efectuadas pelos astronautas da nave Spring detectaram um aumento de tons avermelhados na maior parte do globo terrestre e ligaram para a Casa Branca para alertar.

À vista dos acontecimentos, o próprio presidente do governo decidiu colocar um cravo vermelho na lapela do seu casaco para declarar em público a sua admiração pela literatura do Prémio Nobel português. «E também acha que está na hora deste mundo mudar?», perguntou-lhe alguém. Surpreendido, respondeu: «Não sei, não tinha pensado nisso até agora.» A história segue.
In memoriam.