Saramaguiana
por N. Cardoso, C. Portaceli e C. Cedó 5 Julho 2022

Dos desafios de cegar em dois idiomas

No dia 10 de junho estreou no Porto uma adaptação teatral do romance “Ensaio sobre a Cegueira”, de José Saramago. O espetáculo, que é uma coprodução entre o Teatro Nacional São João e o Teatre Nacional de Catalunya, tem versão cénica de Clàudia Cedó e encenação de Nuno Cardoso. Realizada em língua portuguesa e catalã, com legendas, a peça tem duração de 3 horas e a partir de Setembro começará uma digressão por Barcelona e algumas cidades portuguesas.
A Blimunda publica neste número três textos de profissionais envolvidos nessa adaptação e que figuram no “Manual de Leitura” do espetáculo, edição do TNSJ  entregue ao público.

Um thriller à moda do Porto

“Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.” É um bom conselho, mas é um conselho matreiro, uma espécie de armadilha. Isto porque se olharmos, logo vemos, logo reparamos. Mas os nossos olhos são treinados ao espelho e o espelho só nos devolve uma imagem em contínuo, a nossa. Portanto, vemo-nos e por consequência reparamos em nós. E de tanto repetirmos esse gesto acabamos por nos esquecer para que servem os olhos, para ver o que está para além de nós.

Esquecemo-nos mal deixamos de ser crianças, seres únicos cujos sentidos estão programados desde o ventre para reparar em tudo menos no reflexo do espelho. Nós, mal entramos na escola, somos habituados ao espelho, a olhar o nosso corpo de frente, não o que nos rodeia. Não é por acaso que demoramos horas a olhar para a cara, a ajustar o colarinho da camisa, mas não gastamos um segundo com as costas. Pouco a pouco, ganhamos a espessura de uma folha de papel, ou melhor, de uma folha de rosto.

Isto serve para exemplificar como, à míngua, secamos o nosso próprio olhar. Vivemos em tempos confinados, fechados em nós mesmos. E este confinamento já nos prende há bem mais de dois anos, arrastamo-lo connosco como um caracol a sua casa. Essa narrativa que nos serve tão bem deixa poucas portas abertas para que outras narrativas entrem, poucas janelas onde possamos reparar em quem passa na rua, em quem assoma a um canto e mesmo em quem está sentado ao nosso lado no sofá. Quantos casais vivem anos sem repararem um no outro? Quantas vezes almoçamos ou jantamos com uma janela para o mundo a dar notícias e não reparamos? Quantas vezes passamos na rua e não reparamos em alguém com qualquer coisa escrita num pedaço de cartão. Nós, por hábito, não reparamos. E ao habituarmo-nos a não reparar, condenamo-nos a viver no nosso pequenino mundo, a não ser comunidade.

Esta espécie de cegueira que nos infligimos, feita de tanto olhar, uma cegueira feérica, se quisermos, leva-nos a não ver o que está à nossa frente: a guerra, a fome, a falta de distribuição da riqueza, a frivolidade. E esta cegueira, como um vírus, afeta os outros sentidos. Se não reparamos, não nos damos ao trabalho de ouvir. Se não nos damos ao trabalho de ouvir, não tocamos. Se não nos damos ao trabalho de tocar, o nosso corpo torna-se a nossa fronteira. Se o nosso corpo é a nossa fronteira, não cheiramos outros corpos. Se não cheiramos outros corpos, desconhecemos o sabor da humanidade.

O mundo é um imenso coalescer de vozes diferentes, cheiros diferentes, peles diferentes, e pela força dos nossos sentidos podemos fazer dele uma constelação discernível. Desenhar no céu a expressão bem comum. Bem comum: olhar os nossos amigos, os desconhecidos que nos passam ao lado, os jovens que procuram ver o futuro, o idoso solitário que no coração traz os olhos da família, ou o animal que na retina carrega o abandono. O bem, como o entendo, é isso, um mergulho profundo, de olhos abertos, no humano. Para mim, esta é a única forma de existir cidade.

Dizem-me que José Saramago via Ensaio Sobre a Cegueira como um thriller. Quando penso em thrillers, penso num blockbuster americano, do tipo Missão Impossível, com uma estrela de Hollywood como protagonista. Este, pelo contrário, é um thriller ibérico, um thriller à moda do Porto, protagonizado por atores que fizeram um trabalho extraordinário, por uma equipa artística que ultrapassou todos os obstáculos. Um thriller coral, protagonizado sobretudo por todas as equipas, que fazem, de facto, do Teatro Nacional São João essa jangada onde se acredita que o serviço público é isso mesmo: servir.

Finalmente, agora que o mostramos ao público, espero que faça jus a esse desejo de Saramago. E se não o fizer, que pelo menos não desvirtue a obra-prima que é Ensaio Sobre a Cegueira.

Nuno Cardoso
Diretor Artístico do Teatro Nacional São João

“A Europa da diversidade, das culturas, das línguas”

O Ensaio Sobre a Cegueira de Saramago é um romance poderoso e chocante que ganhou uma surpreendente ressonância nos dias que correm. Vivemos uma pandemia no século XXI; uma guerra muito perto de nós, tão inominável quanto as duas Guerras Mundiais.

De que falamos quando falamos de cegueira? Estamos submersos na hipercomunicação, sempre ligados, damos as nossas opiniões mesmo quando não solicitadas, mesmo quando baseadas em coisa alguma, exercitamos uma cruel e desnecessária sinceridade que não tem nada que ver com uma verdadeira relação entre seres humanos. No entanto, a cada dia encontramo-nos mais sós; a solidão é o novo normal. O mundo transformou-se num arquipélago de solidão.

As redes sociais aniquilaram o sentido de comunidade. O que é estar cego, afinal? Se estamos cegos, porque revelamos o pior de nós? Quando não conseguimos ver, o individualismo toma conta de tudo o que fazemos, perdemos a capacidade de nos colocarmos no lugar do outro, deixamos de sentir compaixão, transformamo-nos em bestas implacáveis. Brutais.

Só quem vê é capaz de entender, de reagir, de sofrer, de ser paciente.

Todos estas questões atravessam o romance de Saramago. É profundo na análise do comportamento humano em tempos difíceis, e a metáfora de estar cego traduz uma situação apocalíptica para a humanidade. Se não conseguimos ver, significa isso o fim da humanidade? Se nos isolamos, estamos condenados à inexistência? Se deixamos de ser uma comunidade, se os rituais forem banidos, é um sinal de que o fim se aproxima?

O Nuno e eu falámos do centenário de Saramago e de fazermos algo juntos, para cumprir o sonho de partilhar um projeto entre dois países europeus, com um passado ditatorial muito recente, duas línguas latinas… E sendo Saramago tão amado em Espanha (quando eu era muito jovem, acreditava que Saramago era espanhol por causa disso) e tão amado em Portugal, foi para nós evidente que teria de ser o Ensaio Sobre a Cegueira.

A situação, a pandemia, o medo, a vulnerabilidade, mas sobretudo a cegueira.

Sentimo-nos muito felizes e sortudos por adaptar esta obra-prima ao palco, por partilhar este projeto tão bonito, por aproximar dois teatros e duas equipas artísticas, por misturar em cena duas línguas tão belas, o catalão e o português.

Só nos tornamos humanos pela palavra, pela arte. Com elas abrimos as nossas mentes, experienciamos outros mundos (esse grande prodígio do espírito humano) e, acima de tudo, elas ajudam-nos a sonhar.

Esta é a Europa em que acreditamos: a Europa da diversidade, das culturas, das línguas, a Europa da democracia.

Carme Portaceli
Diretora Artística do Teatre Nacional de Catalunya

Uma fábula sobre ter os olhos abertos

Fazer a adaptação teatral de uma obra literária de que se gosta é um prazer indescritível. É um ato de amor e uma forma de aproximação íntima ao caminho emocional que o autor percorreu no momento da escrita. É como ir seguindo as suas pegadas na areia e compreender a sua excelência, as decisões que tomou, a feição dos seus sapatos e da terra sob os seus pés. Ler. Compreender. Reler. Compreender de novo. E traduzir todas as dobras de sentido para uma outra língua: a língua do teatro. Esta é a missão do dramaturgista. Garantir que o que o autor queria dizer permaneça intacto em algum recanto da cena, palpitando. Que as emoções que sentiu durante a leitura do romance as possa sentir o espectador assistindo ao espetáculo. Que as palavras (não todas, aquelas que sobreviveram ao trabalho de adaptação) que habitavam o livro e geraram tantas perguntas provoquem, agora, incógnitas similares no público, ao escutá-las vivas na boca dos intérpretes.

Fazer a adaptação teatral de Ensaio Sobre a Cegueira, de José Saramago, foi para mim uma grande honra. Um prazer. Uma experiência de aprendizagem. Um gáudio, um abrir de olhos. Em certos momentos, um horror, uma tortura. Foi uma oportunidade de examinar as entranhas desta obra, que tanto me tinha cativado, e de que tanto gosto, e de penetrar nas suas páginas insondáveis, que permitem uma leitura, e outra, e outra, e outra, descobrindo, de cada vez, algum tesouro que não se tinha visto antes. Saramago diz que lê-lo é como seguir por uma estrada da qual tiraram os sinais de trânsito: “O condutor tem de estar mais atento que nunca.” E é mesmo assim, os sinais de pontuação na sua escrita parecem ter desaparecido ou perdido a utilidade inicial; o uso que faz da linguagem, a combinação dos tempos verbais, não são os que estamos acostumados a ler. São próprios de um narrador surpreendentemente magnético, que não costuma aparecer na literatura: o narrador oral. Saramago utiliza-o e converte-o em mais uma personagem da trama. Alguém que nos fala diretamente, que vai mudando de estilo, que passa do presente ao passado sem uma ordem aparente, que entra e sai da história como quer, que nos leva por esta estrada sem semáforos sem nos perdermos, permitindo-nos viver a leitura de forma, afinal, muito teatral. É por isto, creio, que há algo de muito natural na adaptação de Saramago ao teatro.

Surpreende-me a imensa humanidade que envolve a sua obra. Apesar da escuridão, apesar da ironia e do sarcasmo, apesar da dureza do que enuncia, da minuciosa descrição da maldade de algumas das suas personagens, ao lê-lo tenho sempre a sensação de que uma sombra esperançosa de profunda e luminosa humanidade se projeta sobre toda a sua escrita. Saramago tem a imensa capacidade de compreender profundamente a alma humana, olhá-la de perto. Às vezes, desde o interior das personagens; noutras, desde uma distância prudente que lhe permite aflorar o humor negro português, com o qual os catalães se relacionam tão bem. Um humor que, em vez de nos afastar do drama das personagens, nos aproxima ainda mais de cada um dos sentimentos narrados. É como uma distância próxima, como a dissecação de uma víscera ou a observação de uma paisagem, tudo ao mesmo tempo. E quando acabamos de ler o livro – eu lavada em lágrimas, não apenas da primeira vez, mas em todas – estamos em harmonia com a nossa espécie. Impregna-se nos ossos uma espécie de crença nos nossos semelhantes. Assim vivi a leitura de Ensaio Sobre a Cegueira, tendo-se passado o mesmo com outras obras de Saramago ou com o seu pensamento. Que reconheço pessimista e enormemente humano, em partes iguais. É como se as suas frases “a vida não tem um sentido” e “aqui estamos, vivam-na” fossem compatíveis, e a escuta de ambas, ditas à vez, acendesse em nós um desejo irreprimível de nos aproximarmos dos nossos e deles cuidarmos.

Para mim, Ensaio Sobre a Cegueira é uma fábula de fôlego universal sobre a responsabilidade de ter os olhos abertos quando quem nos rodeia os tem fechados. Uma história sobre a sobrevivência, a moral, o amor, o egoísmo e a solidariedade. Sobre as consequências dos nossos atos e a possibilidade de viver um presente que não tem futuro. Mas Ensaio Sobre a Cegueira também fala de justiça, de democracia, de organização social e de antropologia. É uma análise exaustiva da sociedade em que vivemos. Uma assustadora radiografia dos nossos tempos e uma reflexão profundamente divertida sobre o sentido da vida.

Clàudia Cedó
Trad. Fátima Castro Silva (com Manuel Tur)