Dias Úteis ou a utilidade diária de dar voz e ouvir poesia
Entrevista a Filipe Lopes
Dias Úteis é um podcast de leitura de poesia que Filipe Lopes e a Associação de Ideias disponibiliza desde 21 de março de 2021 em várias plataformas. Como o próprio refere, em conversa com a Blimunda, a audição dura “o tempo de lavar os dentes ou as mãos, de acordo com as indicações da DGS”. O momento quer-se curto, sem qualquer intenção que não a de que o ouvinte possa fruir, repetidamente e em continuidade, dos poemas que se lhe apresentam ao longo do tempo. É diário e alberga todo o tipo de poemas e de leitores. O critério principal prende-se com a promoção do texto e da voz, o que às vezes se imbrica numa mesma pessoa. Por isso, nem todos os poemas são obras primas mas são, garantidamente para o mediador de leitura, textos e vozes que é preciso serem ouvidas.
Filipe Lopes é um amante do género e há um quarto de século que trabalha poesia em recitais e oficinas com vários públicos, entre escolas, estabelecimentos prisionais, lares, hospitais. De certa forma Dias Úteis será, ao longo do tempo, um acervo da diversidade, onde estão textos de poetas consagrados e autores anónimos com quem o mediador vem trabalhando. A urgência de dar voz a quem a não tem, quer por estar nas margens da sociedade, quer por ser invisível para as maiorias, materializa-se em episódios como aqueles em que pacientes da ala de psiquiatria forense do Hospital Magalhães Lemos (Porto) ou utentes dos lares a Casa da Poesia e a Casa dos Mestres (Sertã) lêem poemas escritos por si. A par destes, o ouvinte encontra poemas de Jorge Luís Borges, Ruy Belo, Sophia de Mello Breyner. Miguel Manso lê-se a si próprio tal como Cláudia Lucas Chéu. Uma das semanas é dedicada à editora Minimalista e outra à editora Cotovia que fechou recentemente as portas. Há leitores poetas, atores, livreiros. E muitos outros. No futuro, poderão ouvir-se poemas lidos em várias línguas e, espera-se, novas gravações por jovens leitores.
Como surgiu o Dias Úteis?
A ideia de um podcast começou a marinar há dois anos. Sou consumidor de podcasts, oiço muitos ligados à literatura. Confesso que os que prefiro são aqueles em que se ouve poesia, mais do que aqueles que são conversa em torno dela, porque dão oportunidade às pessoas de ouvir. Comecei a pensar em fazer gavações com as pessoas com quem trabalhava, sobretudo nas escolas, também para motivar os miúdos que, ao serem ouvidos, poderiam querer ouvir mais.
Depois, com o projeto que desenvolvi com o Instituto Camões fui a universidades de vários países e foi fantástico. Gravei poetas locais com a tradução portuguesa, gravei João Luís Barreto Guimarães em búlgaro, Filipa Leal em búlgaro também, Sophia em checo… Tenho quase tudo para publicar. Sinto um prazer grande em ouvir um estrangeiro a ler um texto em português porque é uma pessoa que fez um esforço de encontrar uma língua diferente para se expressar. Depois, também ouvir o original ou a tradução na língua dessa pessoa em que se vê que a cadência é completamente diferente. Isto para dizer que fui recolhendo algum material primeiro, ainda numa fase embrionária do projeto, sem estar nada programado.
Então o podcast não surgiu como resposta à pandemia e ao confinamento?
Não. Quando comecei a gravar nas universidades em outros países estávamos no segundo semestre de 2019. Depois sim, entrou a pandemia e tive algumas questões pessoais que me retiraram disponibilidade para me dedicar ao projeto. Na altura do segundo confinamento não só eu estava já noutra fase como os restantes elementos da minha pequena equipa (somos quatro no núcleo duro) começaram a ter ideias para outros projetos, nomeadamente o Palavras Vizinhas. Um pouco por causa do efeito que o Palavras Vizinhas estava a ter e da motivação que nos estava a dar para trabalhar decidi arriscar fazer um site novo para a Associação e lançar o site e o podcast no dia 21 de março.
O trabalho que tens desenvolvido com a Direção Geral dos Serviços Prisionais também pode ter lugar nos Dias Úteis?
Essa era uma das ideias iniciais. Há um outro projeto paralelo a ser realizado com os reclusos mas a pandemia deixou-nos à parte dessa comunidade. Por isso talvez possa haver a participação eventual de algum recluso ou algum poema nos Dias Úteis mas quero fazer um projeto específico só para as prisões porque merece outro tipo de abordagem.
Que expectativas tens para o programa?
Eu podia ler todos os dias, o que era um aborrecimento. Não estou a projetar a minha imagem nem a dos meus serviços. Nada disso. Estou a dar voz aos autores, estou a dar voz a algumas pessoas que tinham receio de se ouvir em público mas que deram esse passo e estou a mostrar poemas muito diversificados. O que pretendo é que alguém que oiça possa dizer: “Ah! Eu não sabia que gostava disto!” Se tiver algo muito prolongado, mais do que um ou dois minutos, se calhar não há muita gente que oiça. Assim é possível que uma série de pessoas aceda gratuitamente, que estas pessoas consigam ouvir e, se tiverem curiosidade, possam explorar os links para saberem mais sobre os autores ou que trabalho é feito pelos leitores, até que possam descobrir outros projetos.
São coisas curtas todos os dias. Se ouvires todos os dias, vai haver uns em que gostas mais, outros em que gostas menos. Mas o que gostava é que o ouvinte tivesse a mesma sensação que temos quando vamos a uma livraria ou a uma biblioteca, abrimos um livro ao calhas, lemos um bocadinho e vemos se aquele texto nos diz alguma coisa. Muitas vezes descobrem-se coisas que nunca descobriríamos apenas porque abrimos o livro ao calhas. Não é nada de novo.
Como é o formato?
O programa é diário e acontece de segunda a sábado. Normalmente acontece uma vez por dia e dura entre um e dois minutos, o tempo da leitura de um poema com a introdução e fecho musical. Convidamos poetas que lêem os seus próprios textos, convidamos pessoas que gostam de poesia para ler textos de poetas, e também divulgamos o nosso trabalho em instituições. Esta semana, por exemplo, estamos a publicar textos originais diferentes do habitual. Resultam de um trabalho que fiz na semana passada na ala de psiquiatria forense do Hospital Magalhães Lemos, no Porto. Por questões de tempo fomos realizando alguns desafios à distância com a mediação da técnica de lá e alguns dos pacientes escreveram poemas sobre a saúde mental. Vais-me dizer: “São obras espantosas.” Não. Tens ali coisas que precisam de ser ouvidas? Tens. Portanto esta semana estou a colocar as gravações que fizemos nos podcasts. O que eu quero é que os Dias Úteis não sejam eruditos, fechados para um grupinho de pessoas.
Ao sábado temos um reminder da semana e convidamos um artista visual para encenar ou dar uma imagem deste agregado semanal. O interesse é a partilha das várias expressões artísticas, da poesia em todas as suas nuances, das suas cambiantes e honestamente tenho gostado do resultado.
O podcast ainda tem a componente musical, que também estabelece uma relação com os poemas lidos.
Tive a sorte de ter um pianista fabuloso, o Marco Figueiredo, que conseguiu fazer uma base sonora que parece que se adapta a todos os poemas. Paguei por este original de piano porque achei que era fundamental, acho que fica bem em todos.
Neste momento o podcast tem sido maioritariamente alimentado por leitores convidados. No futuro haverá espaço para os públicos com quem trabalhas?
Esperamos que quando as escolas nos possam receber haja muito trabalho feito nos recitais e nas oficinas que nos permita gravar alguns dos participantes a ler. Neste momento ainda é tudo um pouco incerto. Felizmente temos muitos e bons amigos que generosamente têm aceitado o convite. Há pessoas extraordinárias, que conhecemos e sabemos que têm um passado e presente artístico fabuloso. Estou a lembrar-me da Alice Vieira a quem escrevemos um email e que enviou imediatamente três poemas com permissão para passar em vídeo, nunca colocou nenhuma questão… Ela já tinha participado na colectânea Do Lado de Dentro que tínhamos editado para financiar o trabalho que fazemos nas prisões. Houve outras pessoas, que só conhecíamos através do facebook e que se predispuseram a ler e a partilhar os seus textos. Temos tido também alguns inéditos. Portanto tem sido muito agradável a esse nível perceber que a esmagadora maioria das pessoas entende a razão por que fazemos o programa e nos oferece a única coisa pela qual é paga.
Como é que o projeto se sustenta? Alguém o apoia ou patrocina?
Não. Até ao momento fiz o investimento necessário a expensas próprias. Já tínhamos equipamento para gravação mas as autorizações, os programas de som, as licenças para podermos fazer divulgação nas plataformas todas, até um programa que edita os metadados de cada episódio, isso fui eu que paguei.
Era-nos possível ter alguma monetização a partir do podbean, a plataforma onde estamos alojados, mas queremos efetivamente que seja assim. Queremos poder continuar a conversar com as editoras e dizer que não ganhamos absolutamente nada com isto. Não há nenhuma razão para nos dizerem que não à publicação dos textos. Queremos manter este grau de integridade e somos idealistas, obviamente.
Mas não te parece que defender que o vosso trabalho não pode ser remunerado em prol da integridade é perverso? Não concordas que o trabalho deve ser remunerado?
Concordo. Mas um apoio ou patrocínio teria de ser dado por organizações mais institucionais. Até agora demos o projeto a conhecer a algumas instituições e ainda não obtivemos resposta. Mas isso não nos demove. Ao mesmo tempo estamos a divulgar a ReLi, a rede de livrarias independentes, por iniciativa própria, porque achamos que as pessoas não precisam de comprar apenas online, podem sair até à livraria mais próxima e ver se o livro está lá e ajudar estas pessoas que nos têm ajudado ao longo de tanto tempo e com tanto esforço.
Tens noção de quem ouve o podcast? Consegues contabilizar o número de ouvintes?
Só consigo contabilizar quem nos ouve através do podbean, onde temos a certificação dos downloads. Por enquanto, serão cerca de cem ouvintes diários, sem termos feito grande divulgação do programa. O mais interessante é que obviamente a maior parte são pessoas de Portugal mas temos já muitos ouvintes do Brasil, E.U.A., Inglaterra, Singapura, Japão, Bulgária…
Também vai haver alguns dias em que teremos poemas exclusivamente em outras línguas porque tivemos a contribuição de pessoas a ler nessas línguas e achámos que não fazia sentido estarmos a fazer uma tradução do poema. Portanto a coisa vai-se espalhando por outros países também através disto, sem esquecer que temos comunidades portuguesas em todo o lado. Por isso é normal que, embora residualmente, haja pessoas em muitos países que possam ter algum interesse pelo programa.
Referiste que ainda não foi feita muita divulgação dos Dias Úteis. Há algum plano nesse sentido?
Precisava de ser uma pessoa com disponibilidade para estar presente em vários sítios e vários círculos mas não sou. Continuo a fazer o trabalho mais na sombra e a deixar que as coisas cresçam devagarinho. A verdade é que gosto muito de trabalhar em prisões, gosto muito de trabalhar em escolas, sobretudo secundárias, e não tenho grande interesse em trabalhar em locais mais eruditos, onde se partilha regularmente poesia. Nada contra mas não é para mim, não sinto que seja aí que cresça o meu público.
Posso depreender então que uma parte do público que gostavas de alcançar é precisamente o adolescente. Há alguma parceria institucional pensada para que o podcast chegue a esse público, nomeadamente através das escolas?
O podcast está classificado na categoria da educação porque a ideia é que o podcast seja educativo. Se tudo correr bem, daqui a um ano estaremos a falar de 300 episódios disponíveis onde as pessoas podem escolher aquele poema de que o professor até falou na aula e gostavam de ouvir lido pelo autor ou outra pessoa. Este trabalho que se está a fazer agora também é para garantir esses conteúdos. Acredito que quando as escolas começarem a abrir e a poder receber-nos para fazer as oficinas e os recitais, surja uma forma de se mostrar aquilo que é feito e que outras escolas depois venham manifestar interesse nisso.
Nessa lógica, enquanto mediador de leitura que és, achas que faz sentido complementares os podcasts com guiões que orientem os professores na divulgação do programa?
Honestamente não. O objetivo é este: é que o acervo exista. Não ouso querer que o podcast seja um acervo de referência para se ir pesquisar leituras de textos até porque há uma coisa que é fundamental: nas minhas sessões só leio textos de que gosto, portanto com os podcasts é igual (mais uma razão para não ser patrocinado por ninguém). Por isso não sei até que ponto os textos que aqui vão estar podem ser passíveis de entrar em guiões para os professores. Se os professores os descobrirem e considerarem que lhes podem interessar, óptimo.
Tenho tentado, enquanto leitor de poesia, não fazer uma leitura muito encenada, quero que seja mais límpida para que o texto seja o fundamental mas sabemos que há muitos professores que não têm nenhuma apetência para a leitura em voz alta e que lhes pode ser útil terem outra pessoa, outra voz, a fazê-lo.
Agora imagina o seguinte cenário: temos um poema em português e em búlgaro e um professor que tenha um aluno de pais búlgaros, mais ou menos recém-chegados, pode descobrir ali uma ferramenta para por todos os restantes a falar e possivelmente aquela pessoa vai-se sentir mais integrada. Isso está tudo dentro da minha cabeça. É com esse objetivo que faço isto.
Os Dias Úteis estão classificados na categoria educação nas plataformas onde podem ser ouvidos os episódios. O que te levou a escolher a categoria educação e não a categoria cultura?
Eu acho que se o fizesse perderia uma capacidade de justificar que esta semana estou a passar só poesia gravada com pessoas com uma doença mental, por exemplo.
Mas estás de acordo com isso? Para ti esses episódios não são cultura?
Para mim são mas geram um entrave em relação ao qual não estou disposto a perder energia a lutar. É claro que não tenho dúvidas de que este é um podcast cultural. Porém, o trabalho que faço enquanto mediador e que se estende ao podcast é um trabalho educativo. Depois temos medo destes chavões: o que é educativo?, o que é cultural? Se vais usufruir de uma coisa pelo simples facto de ela ser um bem cultural ou se ela tem de acrescentar alguma coisa em termos educativos…
Quando tive de escolher escolhi esta via precisamente pelo que disse várias vezes: o mundo cultural assim designado e muito validado pelos seus pares não gosta de algumas abordagens.
A experiência que tenho de 25 anos neste trabalho a chegar efetivamente junto de pessoas… Não sei quantos leitores consegui trazer para a vida futura, não sei quantos são mas sei o que senti quando aquelas pessoas que não tinham expectativa nenhuma ou tinham uma expectativa completamente oposta, receberam os textos e a experiência e depois os levaram consigo. Também é isto que quero que aconteça com os Dias Úteis.
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