Espelho Meu Andreia Brites 22 Julho 2021

Viagem ao centro do escuro
David Machado
Madalena Moniz
Caminho

A noite, o sono e o sonho não são novos na obra de David Machado. Foi aliás com uma invasão de animais imaginados num quarto partilhado por quatro irmãos que o autor se iniciou na literatura infantil, logo com o Prémio Branquinho da Fonseca, em 2005.

Muitas narrativas passaram, para crianças e para adultos, mas é notória a presença mais literal ou figurada do onírico enquanto desafio, liberdade e espanto. Talvez porque o topos do sonho sirva o tema da auto-descoberta, com todos os medos, hesitações e deslumbramentos que esta implica. 

A coincidência reside no facto de também Madalena Moniz se ter dedicado, no segundo álbum que assinou a solo, João Timoneiro, ao tema da descoberta de si e do mundo, recorrendo ao recurso do amigo imaginário.

A dupla que agora encontramos neste livro ilustrado revela por isso duas identidades que se interligam com fluidez. Os tons escuros da ilustração, entre os pretos, os azuis e os verdes acomodam o quarto e o caminho que os irmãos percorrem num universo misterioso e inacessível. A natureza que brota de quase todas as páginas, a par dos cornos brancos do monstro que o identificam aqui ou ali bem podem remeter para Sendak e o seu álbum fundador, Onde vivem os monstros, também ele uma criação profundamente onírica. 

Esta dimensão cromática arrojada e pouco presente na ilustração de livros infantis amplia a sensação de incerteza e medo do protagonista que, ao contrário do anti-herói sendakiano, se vê forçado a entrar numa missão por sentido de proteção para com a irmã. Assim se tece o jogo sobre a confiança e o medo: ela que avança destemida e impõe factos como se fossem inquestionáveis e óbvios e ele que não faz a mínima ideia do que lhes está a acontecer e como poderá terminar a jornada. Neste quadro, o argumento da benjamin é tão ingénuo como desconcertante: ela não tem medo porque o irmão a protege, sendo que ela está muito mais bem munida de ferramentas para defender o irmão do que o contrário. Afinal, de quem é efetivamente o sonho? Acredita o leitor que é da irmã mais nova? Ou será do irmão mais velho que precisa de o justificar? Quem realmente ultrapassa medos e obstáculos é ele, não ela que tudo sabe sobre distâncias, perigos na floresta e monstros que têm de reencontrar a família. Nesta narrativa iniciática há espaço para tudo: a angústia da responsabilidade, o pânico, a vergonha, o espanto, o questionamento, a superação. Tudo com uma pitada de humor e a força do sentimento de pertença e proteção que se sente quer no texto quer na ilustração que sempre ilumina os dois irmãos como sinal de esperança e força.