

Desvirtuando Caim
José Saramago e a novelização da Bíblia
O último romance de José Saramago, Caim, oferece um envolvimento pós-moderno convincente e sedutor com a Bíblia, desafiando sua grande narrativa e destacando sua natureza altamente fragmentada. A abordagem paródica de Saramago ressalta sua interação irresistivelmente inventiva com este texto cristão fundamental. Ao longo de suas obras, Saramago critica e descontrói consistentemente as estruturas de poder inerentes à ideologia cristã por meio de reinterpretações heréticas e irônicas, conectando temas judaico-cristãos antigos com a subjetividade moderna e pós-moderna. Seus romances servem como um afastamento retórico do dogma cristão, fornecendo uma perspectiva diferenciada sobre os eventos frequentemente perturbadores retratados na Bíblia.
Em sua adaptação romanesca das escrituras, Saramago cita, parodia e transforma com maestria o texto bíblico, integrando-o como um elemento subversivo em sua ficção. Desta forma, evita que a Bíblia seja percebida como uma obra monolítica ou puramente devocional. Suas intervenções narrativas antirreligiosas transcendem o modelo bíblico ao contornar alegórica e parodicamente as convenções poéticas, obrigando o leitor a mergulhar no contexto ficcional. Para Saramago, a Bíblia continua sendo uma fonte crucial para a investigação moral, a exploração linguística e o desenvolvimento de personagens. A forma do romance, para ele e alguns de seus contemporâneos, torna-se um meio flexível para elaborar, criticar e recontextualizar a estrutura narrativa da Bíblia. Essa estratégia pós-moderna produz uma ficção poderosamente original que abrange múltiplos pontos de vista.
O romance de Saramago de 1991, O Evangelho Segundo Jesus Cristo, estabeleceu uma interpretação dissidente do Novo Testamento, enfatizando o “prazer sádico” de Deus no sacrifício de seu filho e de outros mártires. A controvérsia que se seguiu trouxe reconhecimento internacional a Saramago, mas também o levou ao autoexílio na Espanha, devido à condenação governamental e clerical em Portugal. Em Caim, Saramago revisita as histórias fundamentais da Bíblia, imbuindo a jornada de Caim do Jardim do Éden ao Dilúvio com sua característica ironia complexa, cética e avidamente bem-humorada. A desconfiança e o ceticismo inerentes ao romance em relação à tradição cristã refletem a ficcionalidade de personagens bíblicos, incluindo o próprio Caim. De uma perspectiva pós-modernista, Caim incorpora uma contradição metalinguística, existindo tanto dentro quanto fora do paradigma bíblico, simultaneamente abordando e subvertendo suas próprias proposições provisórias. Consequentemente, Caim é tanto um comentário sobre a forma do romance quanto sobre a própria Bíblia.
A dinâmica de rivalidade e identidade entre Caim, Abel e Deus no romance, quando desvinculada de suas origens bíblicas e transposta para um cenário mundano, humaniza a narrativa e, ironicamente, distancia-se da ideologia bíblica. O romance exibe um realismo rápido e vívido que contrasta fortemente com os pronunciamentos solenes do Antigo Testamento. Sua autorreflexividade paródica transforma com humor o tom reverenciado das escrituras em fascinante zombaria, sensualidade e sátira hiperbólica. Saramago sugere que a “crueldade arbitrária” retratada na Bíblia torna a estrutura moral judaico-cristã irreligiosa e hipócrita, precisamente por excluir a ironia como modo de interpretação. O romance aborda diretamente esse problema. O Prêmio Nobel de Literatura de Saramago em 1998 reconheceu sua capacidade de “nos permitir continuamente apreender uma realidade ilusória por meio de parábolas sustentadas pela imaginação, compaixão e ironia”. A “realidade ilusória” que Caim nos permite apreender é sua base na antiga tradição bíblica, ao mesmo tempo em que se envolve com a humanidade contemporânea, uma civilização aparentemente “cega de razão, moralmente fragmentada e desprovida de sensibilidade”. Caim é moldado por experiências políticas e sociais do século XX, apresentando personagens bíblicos amorais e apaixonados que não são sagrados, mas “perdidos em imagens mundanas provocativas”. O romance pode ser interpretado como uma transfiguração da vida religiosa hierarquicamente permanente, elevando o moralmente sacrossanto à existência moderna universalmente cotidiana. Saramago postula que as crenças cristãs, quando compreendidas fora de seu escopo histórico-ficcional, podem ser até mesmo prejudiciais às relações humanas.

O Ato Enunciativo
O estilo narrativo característico de Saramago é marcado por uma técnica abertamente oral, reconhecida por sua fluidez e ritmo que integra a fala cotidiana em uma prosa retórica, densa e digressiva. Essa oralidade, com suas excentricidades formais e tonais, é uma marca registrada de seu estilo inconfundível de prosa de Saramago. O próprio autor afirmou que todos os seus livros são “projetados para serem ouvidos”. Em Caim, o narrador começa detalhando a frustração de Deus com a incapacidade de Adão e Eva de falar e seu subsequente ato de conceder-lhes o dom de línguas.
Essa técnica oral alude à teatralidade de personagens e cenários bíblicos icônicos, que foram interpretados visual, textual e oralmente ao longo de dois milênios em diversas maneiras. O texto saramagueano funciona também como uma declaração tipográfica, alertando os leitores de que a sintaxe deve ser construída por eles. Apesar de sua extensão, as frases de Saramago são sintaticamente administráveis, com elementos paralelos entrelaçados por orações subordinadas, permitindo que as ideias se entrelacem sem perder a coerência. O uso deliberado de pontos e vírgulas como marcadores de pausas e intervalos realça a situação semiótica do texto, permitindo que a forma seja permeada por significado. A voz do narrador de Saramago unifica consistentemente os elementos textuais, injetando sagacidade e perspicácia à multitude de orações subordinadas. Essa dinâmica sintática única imbui o texto com os atributos e expressões da fala oral, e gera uma impressionante expansão visual e filosófica de temas, cenários e imagens.
A experimentação de Saramago com a oralidade é ainda caracterizada pelo uso econômico da pontuação, que fortalece o vínculo entre a forma ficcional e a cognição verbal. O autor se desvia sistematicamente dos esquemas tipográficos convencionais, empregando letras maiúsculas apenas no início das frases ou para o discurso indireto, e usando exclusivamente vírgulas e pontos finais, redefinindo assim a composição das frases. Ao confiar a pontuação ao leitor, Saramago o envolve ativamente no ato da composição. Essa abordagem também desafia a noção tradicional de diálogo. Enquanto a onipresença de Deus torna o diálogo teológico impossível, Caim transcende as fronteiras das escrituras ao injetar continuamente elementos irônicos, humorísticos e epistemologicamente surpreendentes em sua trama textual.

Semelhante a Caim, outros romances contemporâneos exploraram o discurso bíblico sob uma lente pós-moderna. Quarentena (1997), por exemplo, de Jim Crace, satiriza credos litúrgicos autoritários, retratando Jesus com dramáticas imperfeições pessoais. O romance de Crace interroga sarcasticamente as qualidades messiânicas de Jesus, revelando um reino metafísico imaginativo, ao mesmo tempo em que se esforça para desmascará-lo por meio de diálogos pungentes e sardônicos. Da mesma forma, os diálogos em Caim caricaturam criativamente situações bíblicas familiares, codificando traços das próprias convenções que o romance busca fragmentar. Para Saramago, o “aspecto raivoso” do sacrifício e do castigo na doutrina cristã é profundamente problemático. O romance conscientemente parodia a Bíblia, intervindo afincadamente em seus temas sagrados, como exemplificado no diálogo entre “senhor” e “caim”. Esse diálogo ficcional alegoriza os mesmos aspectos problemáticos da história bíblica que escritores como Jim Crace, Cormac McCarthy e Julian Barnes recontextualizam em suas obras. O leitor é convidado a vivenciar a ironia socrática, que constantemente lança dúvidas sobre a seriedade das escrituras e o sistema teológico que endossa sua autoridade. A construção singular das frases de Saramago combina perfeitamente elementos do enredo bíblico com exegese e comentários pessoais, transmitidos tanto pela fala dos personagens quanto pela voz do narrador. Esse engajamento contínuo e irônico com a Bíblia gera não apenas comédia, humor como também observações anacrônicas estimulantes e pungentes.
A abordagem do escritor destaca o papel potencialmente perigoso da instituição cristã, que deriva sua autoridade pública de textos que moralmente podem não ser facilmente justificáveis. Saramago acredita que, embora a “intencionalidade” no texto bíblico possa produzir realidades devastadoras, “deus, caso exista”, não pode ser responsabilizado por tal “sistema colérico”. Em vez disso, a culpa recai sobre ideologias que falam “sem autorização” em nome de Deus. Como um típico romance pós-moderno, Caim aborda questões de historicidade, representação e a natureza intertextual do passado. Para alguns leitores, Caim pode ser percebido como um texto herético, semelhante ao romance de Crace, a menos que se reconheça que nenhuma religião ou sistema político justifica o sacrifício humano, um ponto que o romance de Saramago insiste em salientar. Tanto é o caso que a crítica cáustica de Saramago à Igreja levou à negação da aprovação oficial de sua obra pelo governo português no final da década de 1980 e na década seguinte.
Ironia Intertextual
Caim também funciona como um ato de intertextualidade, baseando-se em obras literárias anteriores. Sua qualidade polifônica questiona continuamente a relação entre história bíblica, discurso eclesiástico e opressão. As fábulas de Saramago animam e reimaginam figuras bíblicas emblemáticas, representativas dos diversos ensinamentos morais da Bíblia, ao mesmo tempo que sugerem uma contra-identificação subversiva com essas visões morais. Harold Bloom, que considerava Saramago “o escritor vivo mais convincente”, descreveu a “ansiedade da influência” como um diálogo contínuo com o passado que molda escritores. O texto pós-moderno de Saramago inevitavelmente se baseia nos próprios textos que busca minar. Ao criar um mundo ficcional onde a tradição bíblica se dissolve na cultura pós-moderna, Saramago descentraliza a aura contextual da Bíblia, tornando a verdade ou a falsidade menos relevantes. O romance distorce os “fatos” bíblicos para alinhá-los às suas próprias preocupações pós-modernas.
O envolvimento do romance com a Bíblia também é evidente em Meridiano de Sangue (1985), de Cormac McCarthy, que frequentemente faz alusões à Bíblia, Moby Dick e Paraíso Perdido. Ao contrário de Saramago, que afirmou que “a Bíblia não é um livro que pode ser deixado nas mãos de uma criança”, McCarthy provocativamente fornece ao seu protagonista anti-heróico, “o garoto”, um exemplar da Bíblia, apesar de seu analfabetismo. Amy Hungerford sugere que McCarthy busca transmitir a sensação das escrituras enquanto, simultaneamente, apaga seu conteúdo, colocando a Bíblia nas mãos de uma criança analfabeta. A conquista de McCarthy reside em retratar a importância da Bíblia como objeto e artefato literário, demonstrando como narrativas de miséria, fratricídio e punição podem exercer poder ideológico. No romance de McCarthy, o personagem violento, “o juiz”, vê a guerra como o próprio Deus, ou uma manifestação da persona de Deus. Tanto os romances de McCarthy quanto os de Saramago empregam alusões bíblicas como “instrumentos desavergonhados e desestabilizadores” de subversão, em vez de expressões da ortodoxia judaico-cristã.
Saramago oferece um retrato ainda mais picaresco, como a anedota de Eva e Caim discutindo sobre árvores tímidas. O julgamento pessimista do narrador (“Aquele menino irá longe. E talvez o tivesse feito se o senhor não tivesse cruzado seu caminho.”) destaca a relação dialética entre a independência de Caim e seus infortúnios com a autoridade celestial opressora. Caim, como personagem, é ao mesmo tempo avançado e subdesenvolvido; ele rejeita a doutrina religiosa, mas retém elementos do pensamento cristão, tornando-o uma entidade teológica em tudo, exceto na premissa. Saramago exacerba esse dilema ao retratar Caim de forma picaresca. A relação servil de Caim com “deus” no romance envolve humilhação, punição e arrependimento, que o personagem cumpre apenas parcialmente. Essa estratégia coloca Caim no reino dos personagens picarescos, itinerantes e ligeiramente malandros, permitindo a Saramago restabelecer a dicotomia bíblico-literária ao intensificar o dilema entre o sagrado e o profano. Nesse sentido, o romance serve como um microcosmo da condição humana na civilização ocidental.

Historicismo Pós-Moderno e Metaficcionalidade
Saramago, como muitos contemporâneos, preocupa-se intensamente com o status do fato histórico. O narrador em Caim expressa ceticismo em relação aos textos que registram eventos envolvendo o “intocável engenheiro celeste”, para usar a expressão de Terry Eagleton. O ceticismo pós-moderno do romance sugere um “relativismo tirânico” ao expor que os textos bíblicos coexistem com cronologias diferentes e fontes discutíveis. Para Saramago, a suposta transcendência de Deus como criador é problemática e se torna uma deliciosa “presa para o romance”. O romance, segundo Franco Moretti, desmascara “construções ideológicas opressivas” e oferece perspectivas parciais em vez de interpretações autoritativas. Caim é incrédulo em relação a grandes narrativas e funciona como uma crítica às formas institucionais e ideológicas de discurso dentro do pós-modernismo. O romance questiona profundamente a lógica do Antigo Testamento e a maneira como ela foi legitimada na história bíblica.
Por meio de efeitos verbais cumulativos, Saramago cria uma encenação sarcástica de histórias e perspectivas incompatíveis com a narrativa bíblica. O romance sugere que os personagens do Antigo Testamento são controlados por uma lógica oculta: a antiga tradição oral e as mitologias que organizam o cânone bíblico. Isso sugere uma desconfiança no desempenho das instituições cristãs devido à sua incoerência temporal. Julian Barnes, romancista inglês contemporâneo, abordou questões semelhantes em Uma História do Mundo em 10 Capítulos e Meio, retratando cinicamente a arca de Noé e o dilúvio. Em tais romances, o poder subversivo da ironia, da paródia e do humor na contestação de narrativas mitológicas universalizantes não pode ser desconsiderado. Tanto os romances de Saramago quanto os de Barnes representam “discursos de ruptura”, uma retórica de descontinuidade e descentralização que define a identidade literária pós-moderna. Como na maioria dos casos com escritores pós-modernos, vários romances de Saramago incorporam esteticamente os textos que buscam desafiar, desmascarando sua hegemonia política e ideológica.
O Leitor Vigilante
Saramago enfatiza a construção do romance ao fazer com que seu avatar no texto, seu narrador, se refira continuamente ao leitor. Um recurso proeminente em Caim é sua relação autoconsciente e irônica com o leitor. O narrador enfatiza maliciosamente a ficcionalidade de sua reconstrução bíblica. Essas constantes referências autorreflexivas permeiam a narrativa, revelando com elegância a atitude paradoxal do romance em relação à religião. A narrativa progride de declarações iniciais para fatos ficcionais generalizados, tudo apresentado por uma única voz autoral. Essa voz, no entanto, usa a primeira pessoa do plural (“atendamos”), funcionando como um tropo de modéstia que simultaneamente destrona a monotonia das passagens bíblicas. O narrador então invoca o “leitor vigilante e mais atento” com formas condicionais, enfatizando as implicações teológicas abertamente absurdas do texto narrado. A narrativa, portanto, exibe uma atitude pós-modernista típica, apresentando continuamente o conteúdo e, em seguida, questionando seus limites. Caim zomba de sua própria autoridade discursiva enquanto, simultaneamente, desautoriza outro discurso. Essa abordagem exige que o leitor decifre o estilo não convencional de Saramago. As qualidades metaficcionais e a autoconsciência crítica do texto efetivamente obscurecem a distância entre os processos de escrita e leitura. Ana Paula Arnaut observa que, nos romances de Saramago, dirigir-se ao leitor legitima as histórias, tornando-as críveis e acessíveis. Isso revela que a perspectiva moral de uma obra depende tanto da forma quanto do conteúdo, exibindo também o narrador engenhoso de Saramago, que, como Caim, transita pelos contos, imprimindo uma marca estilística reconhecível e incomparável que levou o autor ao reconhecimento e ao respeito acadêmico internacionais. Se Deus é a pedra de toque moral das escrituras, o narrador de Saramago em Caim é, ironicamente, o equivalente a Deus.
Outro aspecto inigualável da prosa de Saramago é sua estrutura metonímica, caracterizada por longas digressões. O escritor é declaradamente influenciado por Kafka, cujos romances também utilizam efeitos retóricos de atrasos metonímicos. Ao contrário da visão de Peter Brooks de que um texto romanesco não existe para revelar seu escritor, os romances de Saramago, por meio de digressões intermináveis, articulam discutivelmente algumas das visões morais do próprio autor em seus enredos. Essa abordagem antibarthesiana sugere que o texto é vivo como um autor que, por meio da ironia, da paródia e do humor, não apenas desafia grandes narrativas como o cristianismo, mas também tenta resolver as tensões entre tema e método. As intermináveis digressões do narrador são características expressivas da prosa de Saramago. Apesar das interjeições autorais, o romance é guiado por uma voz contemporânea, agudamente perceptiva e escarnecedora, que desestabiliza uma variedade inusitada de passagens bíblicas para transmitir seus pensamentos instigadores e audazes.

Questões de Identidade
Caim apresenta o drama da subjetividade e do não-pertencimento, conectando identidade com linguagem e literatura. Questões de hierarquia e arbitrariedade estão diretamente ligadas ao significado e ao autoconhecimento, daí o início do romance com uma poética consideração sobre a linguagem. Saramago alinha-se ao movimento centrífugo da ficção pós-modernista. Abandonado por um “deus narcisista, assassino e intratável”, após assassinar seu irmão, Caim embarca em uma jornada pelos eventos bíblicos, testemunhando a destruição de Sodoma e Gomorra, a demolição da Torre de Babel, os privilégios de Jó e ajudando Noé a construir a arca. Após o dilúvio, Caim observa a matança sistemática de todos os passageiros, deixando apenas “deus” e sua ira como força viva restante. Ao longo de seu exílio disfarçado e deslocamento temporal, Caim se transforma. Sua jornada é permeada por suspeita, ressentimento e ansiedade física, e ele nunca se torna um insider em nenhum dos contos.
Ao extrair Caim de sua estória original e retratá-lo como um outsider em várias passagens mitológicas, o texto se torna um espaço para a subjetividade contra-hegemônica. No entanto, embora o sujeito subversivo do protagonista represente um desconhecimento de sua estrutura histórica original, ele também testemunha seu aprisionamento dentro da própria ideologia da qual o autor busca libertá-lo. O Caim bíblico representa uma alma amaldiçoada que não cumpriu os mandamentos caprichosos de Deus, mas o romance o transubstancia em uma posição universalmente comum de não-pertencimento, antagônica ao tipo de personagem confinado por sua genealogia narrativa em Gênesis. A representação de Caim como um estranho, com uma identidade interrompida e desencaixada, deve-se ao fato de Saramago o ter alçado do sacrossanto Antigo Testamento para o mundo efêmero, paródico e picaresco do romance. Nesse sentido, Caim, como transfiguração da vida cotidiana, poderia ser qualquer um de nós.
O romance exibe constantemente processos de identificação, problematizando incessantemente a lógica da ancestralidade e da hereditariedade que vincula a identidade individual ao passado. Saramago lucidamente desafia a ideia de que nomes em um mundo cristão devem ser associados à teologia. Ao descapitalizar nomes próprios (“caim”), o autor funde sujeito e objeto, fazendo um comentário intrigante sobre a natureza do eu e do conhecimento, dissociando assim pressupostos linguísticos e ontológicos comuns sobre qualidades humanas inerentes. A dificuldade de estabelecer a verdadeira identidade de uma pessoa permeia as experiências de Caim, e o romance demonstra o quão pouco seus personagens se entendem entre si e com a humanidade. Essa alienação cria uma tensão que se torna fonte de humor irreverente e habilidosos comentários satíricos. O narrador gesticula continuamente para sua própria literariedade. Se o romance toma emprestado e se identifica com a Bíblia, o faz de forma mais cômica do que polêmica.
Na visão de Mikhail Bakhtin sobre o discurso polifônico em romances, o caráter ontológico do romance pós-moderno é evidente em sua preocupação com a criação de novos mundos autônomos. Definido dessa forma, Saramago, em Caim, pergunta: “que tipos de respostas a colisão de diferentes tipos de mundo pode suscitar?” ou “o que acontece quando as fronteiras entre esses mundos colidem ou são violadas?”.
Alguns críticos conservadores, até mesmo portugueses, consideram as apropriações bíblicas de Saramago não só em “Caim”, mas em outros romances, como um pastiche vulgar, condescendente e acrítico. Outros já acusaram Saramago especificamente de ser insuficientemente prescritivo em relação às regras da teoria pós-moderna. No entanto, os romances de Saramago, particularmente O Evangelho Segundo Jesus Cristo e Caim, atribuem múltiplas camadas de discursividade e instâncias semióticas contraditórias a textos que, de outra forma, correriam o risco de serem congelados em artefatos teológicos fossilizados. O resgate arqueológico da tradição literária antiga por Saramago não é um recuo, mas um envolvimento complexo e profundo com seu mundo contemporâneo. Independentemente dos atributos pós-modernos do romance, um significado central pode ser inferido: a dessacralização do divino. O romance sugere obliquamente que a justiça divina deve ser mantida para que o cristianismo não se desintegre, mas a compaixão prometida ameaça corroê-la por dentro. Até mesmo os anjos ficam perplexos com a “imoralidade abrasiva” de Deus no texto, um tema recorrente nos romances de Saramago.
Uma das preocupações políticas persistentes de Saramago é o papel do cristianismo na história ocidental. Como observa Clive James, o efeito sobre o público é que o leitor nunca perde de vista a turbulência onde cultura, tradição e política se encontram. O Evangelho Segundo Jesus Cristo destaca muitos desses temas, retratando Jesus como um homem escolhido pelo Deus judeu para seus planos de expansão territorial, exigindo o sacrifício de Jesus por um reino cristão universal. Assim como Caim, o Evangelho exibe uma desarticulação entre indivíduos e estruturas de poder e encena uma fratura entre punição e fé. Saramago afirma que ambos os romances “censuram a crença em um deus onipotente e sua igreja imperialista que persiste em sua passividade diante da desgraça da raça humana”.
A paródia complexa e extensa de Saramago confronta a impossibilidade de encerramento, ao mesmo tempo em que a supera. O final do romance não oferece uma conclusão filosófica ou moral, mas sim uma conclusão sublimemente estética. Seu epílogo poético evita analogias linguísticas com a Bíblia, subordinando a narrativa bíblica como parte do próprio problema para o qual ela foi prescrita como solução por séculos.
Interessantemente, a motivação para a escolha de um herói bíblico para seu último romance pode ter sido explorar o conceito mais amplo de identidade e o próprio eu do autor. A seção final do romance contem, a meu ver, uma visão melancólica e poeticamente autobiográfica. Caim foi escrito quando Saramago, aos oitenta e sete anos, lutava contra problemas de saúde, ditando trechos do romance ao seu sobrinho de sua cama de hospital. Nesta triste situação, não é difícil imaginar o romancista confrontando o fim de sua própria vida no texto. Para mim, as páginas finais do romance retratam um autor se despedindo francamente de seu público e de sua narrativa. A troca entre Caim e Deus termina com o narrador afirmando: “A história, porém, acabou, não haverá mais nada a contar”. Aqui, o artista revela um desinteresse supremo e gentil, confrontando tanto os problemas estéticos de sua carreira quanto o fim de sua vida física. Caim reafirma, continua e, em grande parte, conclui o projeto de Saramago de desenvolver uma voz altamente sofisticada, magnificamente refrescante, belamente dissonante e espetacularmente original dentro da ficção portuguesa. Há de se mencionar, mesmo que de passagem, que os esforços da tradutora inglesa, Margaret Jull Costa, em traduzir as digressões e expressões idiomáticas de Saramago no espírito do texto original em português são notáveis.

Conclusão
Embora a Bíblia tenha sido um recurso constante para a literatura, poucos romancistas secularizaram a grande narrativa bíblica tão extensivamente quanto José Saramago. Em Caim, seu romance final, o autor reimagina a Bíblia por meio de uma estética pós-moderna, transformando material teológico cristão estagnado em uma estória paródica magnífica e encantadoramente séria. Saramago emprega em Caim uma retórica paradoxal de inscrição e insubordinação, absorta em processos seculares, imersa em humor irônico e comicamente codificada na própria tradição que busca subverter. Em seu contexto pós-moderno, o romance luta para distinguir a ambição teológica supostamente positiva da Bíblia da tirania dos eventos que ela retrata, que, em última análise, destroem sua substância. Como os romances de outros escritores contemporâneos, como Crace, McCarthy e Barnes, o romance de Saramago não apenas rompe radicalmente com a narrativa bíblica principal, mas também retrata o deslocamento essencial das formas de identidade contidas nela. Além disso, o romance encena sua própria contradição metalinguística de estar tanto dentro quanto fora, cúmplice e desvinculado de sua própria formulação e do sistema mitológico em que se insere nos temas que aborda. Na estória poeticamente irônica de Saramago, “deus” é ao mesmo tempo “uma estrutura de poder invisível e presunçosa” que governa o universo precariamente e inescapavelmente dependente do sistema cultural que o sustenta. Saramago certa vez observou que “não há remédio para a humanidade”. Sob essa luz, Caim pode ser visto como a tentativa de Saramago de reconciliar a prosa pessimista do futuro da humanidade com a esperança de um mundo melhor.
Elton Uliana é escritor, crítico literário e tradutor brasileiro radicado em Londres. É coeditor do Brazilian Translation Club na University College London (UCL), onde também atua como professor convidado em Teoria da Tradução.