Bordalo Pinheiro e as imagens que contam o mundo
O novo volume dos Cadernos Bordalo dá a conhecer a faceta jornalística de Rafael Bordalo Pinheiro, percorrendo os muitos jornais que fundou e analisando a sua abordagem ao ofício de informar.
Depois do gesto do manguito que Rafael Bordalo Pinheiro imortalizou no Zé Povinho, o quarto número dos Cadernos de Bordalo dedica-se agora ao trabalho jornalístico do multi-facetado criador. Apresentado no início deste mês, Bordalo – o jornalista visual, de Carla Baptista, junta-se assim à colecção de livros publicada pelo Museu Bordalo Pinheiro, que já abordou o fado na obra bordaliana e o trabalho do seu filho, Manuel Gustavo Bordalo Pinheiro, para além do célebre manguito. Na apresentação do novo livro, o jornalista Gonçalo Pereira Rosa e o director do museu, João Alpoim Botelho, juntaram-se à autora do livro para uma conversa com ampla participação do público.
O nome Rafael Bordalo Pinheiro associa-se imediatamente à caricatura e à cerâmica, mas o criador do Zé Povinho foi um incansável criador que recorreu às mais diversas linguagens e técnicas para desenvolver o seu trabalho, muitas vezes cruzando essas linguagens e técnicas sem a preocupação de lhes respeitar as supostas fronteiras. Os jornais que criou são exemplo disso e a sua abordagem ao jornalismo nunca deixa de convocar os seus múltiplos saberes e interesses, bem como a sua própria personalidade, revelada nas convicções republicanas, mas também no respeito pelos adversários políticos, na crítica certeira mas sabiamente humanista, na defesa incansável da liberdade de imprensa. E sobre tudo isto ficamos a saber num livro de 48 páginas, pensado para o público do museu bordaliano e para todos os interessados na herança deste autor, que continua a mostrar uma actualidade impressionante pese embora os mais de cem anos que passaram sobre o seu trabalho e a sua existência.
Rafael Bordalo Pinheiro fundou vários jornais ao longo da sua vida, alguns deles com uma breve carreira, outros mais duradouros na sua aparição nas bancas. Entre 1870 e 1900, criou títulos como O Binóculo, A Berlinda, O Antonio Maria ou A Paródia. Nos anos em que viveu no Brasil, de 1875 a 1879, publicou O Mosquito, Psitt!! e O Besouro. Em todas estas publicações, o desenho, o cartoon e a caricatura tiveram espaço privilegiado, umas vezes comentando a actualidade, outras dando dela notícia aos leitores. Numa litografia reproduzida n’A Paródia, em 1903, vê-se um jovem Bordalo acendendo o cigarro de um outro Bordalo, vinte e quatro anos mais velho. Não é tanto uma passagem de testemunho, mas antes a passagem do tempo retratada num único instante, reforçando o tanto que Bordalo Pinheiro fez nesse intervalo cronológico.
Na apresentação de Bordalo – o jornalista visual, Carla Baptista revelou que os contornos deste livro se foram definindo a partir de uma pergunta: Bordalo foi jornalista ou artista? E a resposta foi-se desenhando à medida que o espólio bordaliano ia sendo percorrido, como contou a autora: «Não se trata de uma ou outra coisa em oposição, mas de ambas. Muitas pessoas não conhecem o Bordalo jornalista, talvez pelas tantas outras coisas que fez ao mesmo tempo, de modo quase frenético, fulgurante.» E essas outras coisas, onde se incluem o desenho, a caricatura ou a cerâmica, contribuíram também para o olhar jornalístico de Bordalo, onde se destacavam, nas palavras de Carla Baptista, «as imagens muito fortes, as descrições psicológicas e físicas muito detalhadas».
Com excepção do foto-jornalismo, o jornalismo visual não tem uma presença muito forte na imprensa actual. Há excepções, ainda assim em número considerável, das reportagens em banda desenhada que vários jornais estrangeiros vão publicando (assinadas por autores como Joe Sacco, Gianluca Constantini ou Ted Rall, entre outros) à ilustração que acompanha, esclarecendo e iluminando, alguns trabalhos escritos. No tempo de Bordalo Pinheiro, essa forma de fazer jornalismo seria comum, talvez pelos baixos índices de literacia, talvez pela tradição que cruza a história da impressão em papel com a da ilustração e do jornalismo, que permitiu uma confluência de gestos e modos de contar o mundo onde a imagem tinha um papel preponderante, e isto numa altura em que a fotografia ainda não tinha feito a sua entrada em cena.
Cruzando o comentário, a paródia e a crítica com a notícia e a reportagem, Rafael Bordalo Pinheiro fez jornalismo nos vários títulos por onde espalhou o seu trabalho e é graças a ele que conhecemos muitas histórias do final do século XIX e início do XX, dos pequenos episódios quotidianos às grandes mudanças políticas. Como disse Carla Baptista na apresentação do seu livro, «Bordalo tinha com os leitores uma relação intensa.» E respondendo à pergunta sobre se o criador do Zé Povinho era percepcionado como jornalista pelos seus leitores, a autora esclareceu: «Qual é a condição para se ser jornalista? Ao contrário do que diz a lei portuguesa, tem a ver com visões do mundo, compromisso ético, relação com os leitores. Bordalo Pinheiro tinha a competência da crítica, mas havia independência, até porque muitos dos seus conhecidos não escapavam a ser caricaturados. Havia actualidade: os jornais dele estão cheios de notícias sobre desastres, adultério, quermesses, festas, estreias de teatro ou ópera, julgamentos, epidemias. Há notícias que até aparecem em verso, talvez pensando no impacto no espaço público. E havia uma percepção dele próprio como jornalista, que até se retrata muitas vezes na redacção, com os outros jornalistas, o que nos permite ver alguns detalhes sobre o modo como se trabalhava. Portanto, sim, Bordalo Pinheiro era percebido pelo público como jornalista, sem dúvida.»
Em resposta à pergunta de uma das pessoas que integrava o público do lançamento de Bordalo, Jornalista Visual, sobre quem seriam os leitores destes tantos jornais criados por Bordalo Pinheiro, o historiador Pedro Bebiano Braga esclareceu que seriam muitos e espalhados pelo território português, ainda que mais concentrados nas cidades: «É evidente que tendo em conta o nível de analfabetismo em Portugal, os jornais eram lidos por uma minoria letrada. Por outro lado, como jornalista que trabalhava com o visual, Bordalo Pinheiro tinha essa mais valia, chegando a outro tipo de leitores. Para além disso, temos notícia de que os jornais eram muitas vezes dispostos noutros formatos, colados nas paredes de tabernas, por exemplo, ou nos quiosques que aparecem em Lisboa nos anos 70-80 do século XIX, o que ampliava o seu público.»
Mais de um século depois da sua morte, a herança de Rafael Bordalo Pinheiro continua a revelar-se, quer na riqueza e na multiplicidade da sua própria obra, quer naquilo que pode ensinar e iluminar sobre a época em que o autor viveu (e viveu-a intensamente). Isso mesmo confirmou Carla Baptista, respondendo a uma pergunta do jornalista Gonçalo Pereira Rosa, que apresentou o livro, sobre a possível novidade que a obra do autor ainda guarda: «A surpresa não está na potencial descoberta de novos espólios, mas sobretudo nas muitas coisas que ainda não foram olhadas de certos pontos de vista.» É o caso, como referiu a autora de Bordalo, Jornalista Visual, das relações particulares de Bordalo Pinheiro com alguns políticos, bem como com os artistas que frequentou, nomeadamente os do Grupo do Leão. Ou do modo como Bordalo se referia às pessoas não-brancas, ou às mulheres, lembrando Carla Baptista que o autor teve algumas desavenças com feministas, nomeadamente com Angelina Vidal. E os próprios jornais, matéria central deste livro, contém ainda um manancial de caminhos a explorar para melhor compreender o criador de Zé Povinho e a sua época, até porque, como disse a autora do livro, «os jornais eram a sua forma de afirmação no espaço público; mesmo que Bordalo tivesse presença em feiras de arte e outros espaços artísticos, era nos jornais que afirmava a sua voz pública.» Agora, com este novo volume dos Cadernos Bordalo, podemos escutar essa voz com ouvidos mais atentos.