Espelho Meu Andreia Brites 21 Julho 2022

senhor feroz
Ondjaki
Alex Gozblau
Editorial Caminho

A intenção poética do álbum encontra expressão no diálogo entre texto e imagem. A narrativa inicial, que tem como protagonistas um avô e uma criança e como ação principal a fuga de um pássaro da gaiola, interrompe-se para dar lugar a micro narrativas e aforismos. Em comum têm as emoções como tema, e a problematização da verdade sensorial e afetiva.

A ilustração representa os quadros textuais de forma clara, recorrendo a vinhetas e molduras. Acrescenta-lhes, todavia, a alteridade de narradores, o que contribui para uma ambiguidade que não é convocada pelo texto. Por outro lado, essa ambiguidade estende a empatia a múltiplas figuras infantis, dotando-as de uma consciência do outro excepcional. Perante o ruído de uma guitarra, a criança considera o ruído bonito porque o rapaz sorri quando toca. Embora pressinta que ele o faz porque está reconhecido com a sua atenção. Não importa. Esta atenção gera uma disposição para ouvir algo dissonante e encontrar-lhe beleza. Ruído bonito está muito próximo de um paradoxo, é por isso poético. A empatia reforça-se quando a narradora descreve a falta de ar que sente ao ver um peixe que agoniza quando se parte o aquário. Numa lógica metonímica, a falta de ar torna-se símbolo de falta de um lar, seja para um peixe, para uma pessoa ou para muitas. Seja circunstancialmente ou definitivamente, no início ou no fim da vida. Gozblau segue o processo de Ondjaki e desenha primeiro o peixe, depois um indivíduo e finaliza com uma mancha de pessoas que preenchem, pela sua disposição na página, o espaço envolvente de uma casa. O maior impacto chega com a descrição da observação de um incêndio. Aqui o narrador recupera a fuga do pássaro para manifestar alívio e acrescenta “vi as pessoas da minha casa e os vizinhos de mãos dadas preocupados com outras pessoas que não elas mesmas. Isso pouco acontece nos dias sem incêndios.”

A transcorrer cada momento visual há padrões e sombras que lhes dão continuidade, cadência e unidade. Quando finalmente regressamos à gaiola esta já existe simbolicamente, como prisão metamorfoseada em lugar de movimento, de liberdade. E então as sombras, muitas vezes apresentadas como o positivo da realidade (como se de uma fotografia se tratasse), são efetivamente a verdade, ecoando a tese platónica da caverna. O álbum fecha com esperança pela ação e união legitimada pelo sentido poético da representação que é, nada mais nada menos do que observar com todos os sentidos, com a emoção e com o legado da memória, da aprendizagem e da curiosidade pelo outro. Não é por acaso a presença tão importante do avô.

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