As histórias que movem o mundo sentam-se à mesa
Fotos © Afonso Sousa @amigoafonso
Qual o papel da comida na construção de identidade? A pergunta foi lançada pela Associação Pão a Pão numa tarde onde o debate, a partilha e a descoberta se fizeram em torno dos pratos cozinhados por pessoas refugiadas e imigrantes que agora vivem em Lisboa, enriquecendo a cidade com as suas histórias e memórias gastronómicas.
Somos os que comemos, dizem os médicos quando querem convencer um paciente a abdicar de certos alimentos em prol da sua saúde. E será verdade que o que comemos nos define boa parte das funções vitais, mas talvez sejamos o que comemos sobretudo numa outra acepção, muito mais fincada na identidade, na memória e nas emoções do que nos níveis de glicose ou de colesterol.
No passado dia 19 de Abril, no centro de Lisboa, o Mercado de Arroios foi palco de um encontro intitulado Qual o papel da comida na construção de identidade? Um debate e uma sessão de desenho (com João Catarino) compunham o programa fixo, mas a tarde foi principalmente um longo momento de partilha à volta da comida e de como somos por ela definidos. Organizada pela Associação Pão a Pão, que promove a integração de pessoas refugiadas através da formação e da empregabilidade, esta tarde gastronómica ocupou as bancas que, pelas manhãs, estão cheias de frutas e legumes e que nesse dia deram lugar a iguarias vindas de geografias mais ou menos distantes pela mão dos seus cozinheiros. Atrás das bancas de pedra, os alunos da Mezze Escola mostraram o seu trabalho. Criada pela Pão a Pão, a Mezze Escola é um programa de formação para refugiados e imigrantes na área da restauração, em parceria com a Escola de Hotelaria e Turismo de Lisboa. O primeiro curso começou em Janeiro deste ano e os alunos preparam-se agora para a segunda fase da formação, mais prática, que decorrerá ao longo dos próximos três meses no restaurante Mezze, também ele um projecto inserido na Pão a Pão. Entretanto, uma nova turma iniciará a primeira fase do curso já em Maio. Francisca Gorjão Henriques, fundadora da associação, assegurou que «a Pão a Pão fará a ponte com os empregadores quando acabar a fase de formação no Mezze e já há estágios garantidos em diferentes restaurantes.»
Em Arroios, houve comida de lugares como a Índia, o Iraque, a Eritreia, a Líbia, a Palestina, a Ucrânia ou o Afeganistão, entre outros. Foi um desafio lançado pela Mezze Escola aos seus formandos, «uma vez que se ia falar de comida e identidade, fazia sentido tornar isto tangível, provar e cheirar aquilo de que íamos falar», explicou Francisca Gorjão Henriques, já depois do evento. Os formandos responderam com receitas representativas da culinária dos seus países de origem, por vezes também das suas famílias, sempre em pequenas porções que podiam levar-se para comer de pé, num canto mais sossegado ou enquanto se escutava o debate que iria ocupar o centro do mercado. Já lá iremos, porque antes disso foi preciso provar boa parte destas iguarias. E provar não é apenas saborear o que se come e alimentar o corpo, é também descobrir ingredientes e aprender as suas histórias, quase sempre cruzando tudo isso com a história mais vasta de países e regiões, com as memórias de quem cozinha e as recordações de quem, por motivos diversos, teve de abandonar o lugar onde nasceu.
Comida também é cultura e história
Muitos dos petiscos dispostos nas bancas do mercado representavam sabores e modos de confecção com raízes na história de quem os cozinhou. Karishma chegou da Índia há 3 anos, vinda da região do Gujarat. As aulas na Mezze Escola têm sido parte importante do seu quotidiano em Portugal e a hipótese de cozinhar pratos da sua gastronomia familiar é algo que a entusiasma: «A comida é uma maneira de mostrar a nossa cultura, mas também a nossa família», contou enquanto provávamos as Dhoklhas, feitas de arroz, lentilhas e iogurte. Os ingredientes e sabores envolvidos nesta espécie de panquecas muito altas fazem parte da história desta mulher, que trouxe para a cidade que agora partilhamos as receitas que tantos restaurantes indianos apresentam nos menus – caso do Gulag Jambun, bolinhas fritas de massa à base de leite e semolina mergulhadas num xarope doce e aromático – e também algumas que aprendeu com a mãe e que se lembra de comer na infância. No presente, Karishma dedica-se a aprender tudo o que pode sobre cozinha e restauração, sem traçar fronteiras no que aos pratos diz respeito: «Quero aprender, praticar e ganhar experiência. Não quero perder a nossa cultura, mas quero conhecer a cozinha portuguesa, de que já gosto.» Gosto confirmado quando aponta o Bacalhau à Brás como prato favorito e descreve, deliciada, a textura dos ovos misturados com as batatas e o peixe.
Reservada a sobremesa para banca do lado, é altura de provar as Kleichas iraquianas feitas por Maysa. Nesta banca também há Dolmas, rolos de folha de videira recheados com carne, legumes e especiarias, e Kubbas, fritos à base de arroz, batata e curcuma com recheio de carne, mas são as Kleichas que Maysa apresenta como cartão de visita: «Pode ser um doce de todos os dias, mas fazemo-lo habitualmente na altura do Ramadão, para se comer à hora de quebrar o jejum, acompanhado com chá.» Parecem pequenos bolinhos de massa folhada, enrolada com uma pasta de tâmara muito doce, e é difícil comer só um. Para a cozinheira iraquiana, ouvir elogios ao sabor das Kleichas que preparou é uma satisfação pessoal, mas é mais do que isso: «Cozinhar estas coisas é uma forma de apresentar a minha cultura às outras pessoas; se elas gostam do doce, estão a gostar também de conhecer o sítio de onde venho, a cultura que tenho, a minha história.»
Na banca com comida da Etiópia, Yika Kiros aponta com convicção para um prato cheio de rolos de uma massa castanha clara quando lhe pergunto o que devo provar. O pão achatado que serve de base a estes rolos chama-se Injera e é um elemento essencial na gastronomia da Etiópia e em toda a regãio da Abissínia. A farinha que se usa na sua confecção é moída a partir dos grãos de uma espécie da eragrostis, uma planta nativa do Corno de África, e depois fermentada num processo demorado que, por ser quotidiano, só incomoda quem quiser replicar a receita em casa uma única vez e tiver pouco tempo para lhe dedicar. Para Yika, é rotina diária na preparação das refeições que serve em modo de take away ou entrega ao domicílio, por encomenda: «Cresci a comer isto e cozinhá-lo é a minha forma de expressar aquilo que sou. Gosto que os portugueses provem e fiquem a conhecer a minha cultura, a minha história.»
O que aqui se apresentou sob a forma de rolo, recheado com carne ou vegetais, é tradicionalmente servido com a massa aberta e as Injeras empilhadas ao alcance de todos os comensais. À volta da comida, habitualmente disposta no chão, sobre um pano, as pessoas retiram pedaços de Injera aos quais adicionam molhos variados, Dorho (galinha cozinhada num estufado rico em molho), legumes e outros acompanhamentos, usando o pão simultaneamente como um talher e como a base de todos os pratos.
Sabores de memória
A conversa com alguns dos participantes neste mercado gastronómico revelou outros pratos que não os que ali se puderam provar. Hendi, que muitos clientes habituais do Mercado de Arroios conhecem da mercearia Zaytouna, especializada em produtos do Médio Oriente, vai distribuindo Falafel a quem o pede, com a ajuda de Fathma, chegada da Síria há cinco anos. Na banca de comida da Palestina também há Baklava, com as camadas de massa que envolvem os frutos secos devidamente humedecidas pelo doce. Quando pergunto a Hendi, palestiniano, se o Falafel é o prato de que primeiro se lembra quando pensa na gastronomia do seu país, a resposta é negativa: «Falafel é muito bom, e esta até é a receita da minha mãe, mas é comida para comer depressa e não se faz apenas na Palestina. Se tivesse de escolher um prato palestiniano, seria o Maklouba, um prato à base de arroz que se fazia todas as sextas-feiras na minha família.» Entre a memória dessas refeições partilhadas e a satisfação de agora as dar conhecer a tanta gente que nunca esteve sequer perto da Palestina, Hendi não hesita em apresentar a comida como «algo que também é político, é cultural, tem um significado por trás, e eu gosto de partilhar isso», essas histórias e memórias pessoais que há sempre à volta de uma receita.
«Quisemos fazer comida que se pudesse comer aqui, como se fosse fast food», explicou Shabana Rasteen, a afegã que tem encantado alguns lisboetas com a sua comida em encontros multi-culturais como o Festival Bairro em Festa ou as Residências refúgio. Aqui, o termo fast food refere-se unicamente à possibilidade de comer sem talheres e em andamento, nunca ao cuidado com a confecção ou à qualidade do que se come. Tudo o que provei seria arrumado sem hesitações na categoria de comida caseira, mas a necessidade de adaptar as iguarias à possibilidade de se comerem com o auxílio das mãos deixou de fora uma série de pratos que são parte intrínseca da identidade de quem cresceu a comê-los. Na banca da comida do Afeganistão, provei várias iguarias, mas a conversa acabou dedicada ao Kabuli Palao, um prato de arroz com carne, vegetais, especiarias e frutos secos. Naquilo que nos define a identidade, esse feixe complexo de heranças, crenças, hábitos, descobertas e afectos, as ausências podem ser tão importantes como as presenças e o Kabuli Palao que não se comeu no Mercado de Arroios foi descrito por Shabana e pelos seus colegas de banca como o mais representativo da gastronomia afegã. «Quase como o Bacalhau à Brás para os portugueses», acrescenta um dos companheiros de Shabana. Talvez outros afegãos pudessem escolher pratos diferentes para este campeonato da representatividade, mas ainda que o Kabuli Palao possa não ser o prato consensual do Afeganistão, é certamente o mais importante da gastronomia familiar e comunitária de quem representou o país nesta tarde gastronómica, bem como das memórias que partilham e trouxeram consigo para Portugal quando lhes foi possível fugir de um país devastado pela guerra. Agora, cozinham comida afegã e descobrem a comida portuguesa. E talvez o Bacalhau à Brás passe um dia a integrar a lista de elementos que forma a sua identidade e dos outros participantes deste encontro, já que o prato português foi amplamente referido por pessoas de diferentes origens.
Construir identidades
No centro do Mercado de Arroios, cinco cadeiras viradas para uma assembleia esperam o início do debate. À hora marcada, ali se sentam Ronald Ranta, antigo chef de cozinha que agora se dedica às ciências políticas, estudando precisamente o papel da comida nas questões identitárias, Alexandra Prado Coelho, jornalista do Público, onde tem escrito muito sobre comida e o tanto que a ela se pode ligar, e André Magalhães, chef da Taberna da Rua das Flores e conhecedor profundo das gastronomias dos países que Portugal colonizou. Francisca Gorjão Henriques, da Associação Pão a Pão, modera a conversa e a quinta cadeira é ocupada pela tradutora de Ronald Ranta, que garante que todos, convidados e público, se compreendem (pensando bem, a tradução é um pouco como a comida que se partilha).
O tema do encontro replica-se nesta conversa e cabe a Ronald Ranta separar as águas entre identidade e nação: «Não há nada específico que faça de um prato um prato nacional. É um processo complexo, que pode acontecer porque o Estado ou os privados promovem um determinado prato ou porque ele é cozinhado e comido massivamente.» Às vezes, aquilo que consideramos um prato nacional até pode ser um que se come cada vez menos, como aconteceu com o famoso Fish and Chips britânico, algo que os trabalhadores de menos posses comiam frequentemente no fim do dia de trabalho, algures entre os séculos XIX e XX, que foi elevado ao estatuto de prato nacional quando já pouca gente o consumia. «Tornou-se uma espécie de símbolo de uma era perdida e o saudosismo fez dele aquilo que é hoje», conta Ranta.
Discutir a pertença exclusiva de certos pratos ou técnicas culinárias a esta ou àquela cultura, a um ou outro país, costuma ser coisa demorada, conflituosa e sem margem para conclusões. Quem faz o verdadeiro Hummus, por exemplo, ou a Baklava mais tradicional? A quem pertence a canja, mesmo que seja apenas sopa de galinha? Onde se cura o verdadeiro queijo de cabra, o mais antigo? Tudo respostas impossíveis, talvez por a comida ser realmente uma parte importante das identidades – as colectivas e as individuais – e por não existirem fronteiras rígidas nessas identidades, mesmo que nos aferremos a certas ideias feitas sobre o que as constitui. Em Israel e na Palestina, esse debate reflecte os conflitos de há décadas, desde o início da ocupação dos territórios palestinianos pelo estado de Israel, e, num movimento de ricochete, contribui também para esses conflitos, como contou Ronald Ranta, que tem estudado a comida e a identidade nesse espaço geográfico. De acordo com o autor de Food, National Identity and Nationalism, o governo de Israel começou por boicotar os pratos palestinianos, procurando criar uma legitimação da comida na Bílbia – «se está referido na Bílbia, é nosso» – e definindo uma política de promoção de uma suposta comida judaica nas escolas e noutros espaços. Fizeram-se livros de culinária israelita que procuravam determinar o que era essa culinária, mas com as origens geográficas e culturais tão diversas dos judeus que se instalaram em Israel, esse era um processo difícil. A solução acabou por passar pela promoção de uma gastronomia judaica que ignorava a diversidade culinária do povo que deveria ser representado por ela e também pela apropriação: «Inicialmente, o Estado [israelita] não queria usar nada da comida palestiniana e queria promover aquilo que definia como ‘comida judaica’, mas o problema é que as pessoas queriam comer comida local. Com o passar dos anos, alguns pratos palestinianos foram apropriados e agora são apresentados como pratos israelitas.»
Diplomacia gastronómica
No modo como vamos conhecendo as características de gastronomias mais ou menos longínquas, as histórias que lemos ou ouvimos sobre elas são narrativas como quaisquer outras, tão definidas pelo conteúdo como pelo arranjo que quem as conta dele faz. Alexandra Prado Coelho confirmou isso mesmo ao partilhar a necessária desconfiança inicial de que se mune quando parte à descoberta de mais uma cozinha: «Há muitos convites para jornalistas irem conhecer gastronomias estrangeiras. Quando chegamos lá, temos de ter consciência de que o que vemos pode não corresponder àquilo que as pessoas comem realmente. As coisas estão lá apresentadas por alguém que já fez uma espécie de storytelling, já construiu alguma coisa à volta daquilo.»
Essa construção pode ser mais ou menos elaborada, focando-se em determinados ingredientes em detrimento de outros (que até podem ser mais consumidos) e definindo estratégias que acabam por ser aquilo a que Ronald Ranta chamou «gastro-diplomacia». Aconteceu no século XVIII com a gastronomia francesa, que passou a ser promovida em todas as embaixadas de França, promovendo com isso os ingredientes, o comércio e as relações internacionais. O mesmo se passou no século XX com a gastronomia tailandesa, ou já no nosso século com a gastronomia escandinava. André Magalhães exemplifica com o caso do Peru, cujo governo contratou um jornalista espanhol para traçar um plano de divulgação e promoção pensado para 20 anos. Como disse o responsável pela Taberna das Flores, «é preciso perceber que isto não é apenas gastronomia, é também promoção do turismo e a possibilidade de escoar uma série de produtos nos quais se passa a investir para a exportação, como aconteceu com os espargos peruanos ou as frutas tropicais tailandesas».
Em Portugal, parecemos estar longe de qualquer estratégia a esse nível. Alexandra Prado Coelho lembrou o Taste Portugal, programa governamental que tinha como objectivo a divulgação da comida portuguesa no estrangeiro, mas que, segundo a jornalista, nunca foi muito eficaz: «Parece que temos muita dificuldade em levar adiante um projecto comum à volta da gastronomia portuguesa. Fizemos e estamos a fazer bem esse percurso com os vinhos, mas com a gastronomia, ainda não.» E André Magalhães deixou ideias para o que podia ser esse projecto: «Devíamos promover vários pratos e produtos [da gastronomia portuguesa] e o que há à volta deles.
O País Basco reivindicou os pinchos, distinguindo-os das tapas espanholas, e nós não sabemos aproveitar para reivindicar os nossos petiscos, em vez disso, andamos a apostar numa cozinha gentrificada.»
Partilhar a mesa
Terminado o debate, as conversas continuam pelo espaço do mercado. Junto às bancas dos alunos da Mezze Escola, vêem-se mais pessoas provando a comida que ali se partilha e é tempo de conversar um pouco com Yelena, chegada da Ucrânia há pouco mais de um mês e convidada especial desta tarde. Em Kharkiv, onde vivia, tinha um pequeno café com fabrico de pão e bolos e era aí que se dedicava à pastelaria, até ao momento em que os bombardeamentos russos atingiram a cidade, ainda há poucas semanas. Yelena conseguiu fugir e encontrou refúgio em Portugal, onde agora recorda o hábito do café e um bolo que faz parte do quotidiano de tantas cidades ucranianas: «O café costuma ser bebido com leite e o momento é partilhado com colegas, amigos ou família, aproveitando para conversar um bocadinho.» Não é diferente de Lisboa, nem de tantos outros lugares do mundo. «Agora, quero tentar fazer a mesma coisa aqui», diz Yelena, enquanto me apresenta as Kartoshkas. São bolos de chocolate e ainda que kasrtoshka signifique ‘batata’ em ucraniano, a pasteleira garante que não há vestígios de batata nesta receita: «A única semelhança com uma batata é a forma dos bolos, o resto é chocolate e ingredientes doces.» Confirma-se. E se Yelena chegar a abrir um café-padaria em Lisboa, talvez as Kartoshkaspossam tornar-se um ponto de encontro regular para quem ainda aprecia sentar-se à mesa com um café e alguém para conversar.
Ao fim da tarde, já se notavam algumas clareiras nas bancas de comida. Claro que para os alunos da Mezze Escola terá sido relevante conseguirem vender parte do que fizeram para este encontro à volta da gastronomia e da identidade, mas percebe-se que a possibilidade de partilharem a sua comida com as pessoas que visitaram o Mercado de Arroios foi pelo menos tão importante como a venda. Essa partilha e o facto de termos gostado daquilo que comemos foi motivo de alegria assinalado por todos os participantes com quem voltei a falar antes da saída. Afinal, é uma parte da sua cultura e das suas memórias que levo comigo, que levamos connosco. E que passa a fazer parte de nós. Como diz um provérbio abissínio, os que comem do mesmo prato não hão-de atraiçoar-se.