Espelho Meu Andreia Brites 28 Abril 2022

O rapaz e o gorila
Jackie Azúa Kramer
Cindy Derby
Orfeu Negro 
Tradução de Rui Lopes

Neste álbum sobre o luto as palavras não se escondem. Não há comparações, metáforas ou imagens que substituam a dor e a angústia da saudade, as perguntas sobre a perda e a ausência.

Porém, em nada a frontalidade do discurso belisca a poética do texto, suportado pela leveza da aguarela.

Sempre em diálogo, a narrativa constrói-se entre as perguntas da criança que acaba de perder a mãe e um gorila que aparece inesperadamente e que lhe vai respondendo. Se por um lado as respostas do primata não se desviam da dura realidade, todos os seus gestos e a sua postura corporal são protetores da criança. O gorila é, todo ele, como um imenso colo. É ele quem se aproxima pela primeira vez, é ele que assume que ninguém sabe ao certo para onde vão os mortos, é ele que assegura ao menino que está mesmo atrás dele quando trepam a uma árvore. O amparo do luto passa por ouvir, aconchegar, mostrar que a solidão, a memória, a falta são inevitáveis. As saudades da voz da mãe, das suas panquecas, do que faziam juntos não se eliminam, não se ignoram.

Em pano de fundo, na imagem, está muitas vezes o pai: no parque infantil, na praia com o papagaio de papel, em casa a dobrar roupa. O luto a dois também é um silêncio que custa a quebrar, um não saber como sofrer junto.

E o gorila vai traçando esse caminho com o menino, lentamente. Até que é a criança quem desabafa com o pai que tem saudades da mãe. Até então o tempo do luto percorre espaços de ausência que vão sendo preenchidos pelo gorila que convoca a mãe através das ações do menino, da sua ativação da memória e do rito: jogar beisebol, fazer as bolachas, colher as flores. A presença possível reside nessa continuidade e é assim que o menino se permite partilhar a sua dor com o pai, quando esta existe intensamente mas, ao mesmo tempo, parece mais apaziguada.

O momento central da narrativa dá-se em seguida, numa página dupla sem texto onde, à direita, o gorila dá colo ao abraço entre pai e filho. E assim começa o seu afastamento.

A ilustração a aguarela alimenta a emoção do texto, pela suavidade difusa das formas e dos contrastes de luz e sombra. Há uma fluidez natural que confere um ritmo lento e contemplativo à experiência da criança. Os apontamentos vermelhos, nas flores, no cachecol, no papagaio de papel, no rolo da massa, nas canetas e nos pássaros contribuem por um lado para a ideia de continuidade e por outro para uma imanência simbólica da mãe, física e irremediavelmente ausente.

Este álbum estabelece uma honestidade fundamental na abordagem de um tema profundo e triste, o que é tão raro quanto imperativo.

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