Espelho Meu Andreia Brites 16 Abril 2024

A barata que acordou transformada numa gigantesca menina
Ana Margarida de Carvalho
Anna Bouza da Costa 
APCC

O ponto de partida deste conto é o texto clássico de Franz Kafka, A Metamorfose. Quem o conhece, reconhece imediatamente a primeira frase: “Quando, certa manhã, a baratinha Georgina Samanta acordou de sonhos agitados, viu-se, na sua cama, transformada numa gigantesca menina.” Ana Margarida de Carvalho segue com as primeiras impressões da menina sobre as mudanças que tinham ocorrido no seu corpo, como acontece com Gregor Samsa. Consegue, com a depuração linguística que caracteriza a sua escrita, descrever a estranheza de um corpo que é o humano, o único que é completamente familiar aos leitores. O exercício funciona graças a comparações e imagens que apresenta – “(…)dois membros desengonçados, como hastes de uma árvore-da-borracha sem clorofila.” ou “(…) abaixo da testa, apareceram-lhe duas lagoas gelatinosas, com uma pinta preta no meio, e de uma delas escorria uma cascata de água.” Igualmente, a comparação entre o corpo da barata (o corpo original de Georgina) e a sua funcionalidade acrescenta conhecimento que nivela os dois corpos. Aqui começa a delinear-se a intenção deste exercício literário: se Kafka reflete sobre identidade e família, denunciando a violência do desprezo e a ilusão do amor e do reconhecimento, Ana Margarida de Carvalho usa esta parábola para criticar o pensamento e a ação antropocentrista. Georgina fica estarrecida quando constata que o ser humano destrói o ecossistema e cria mecanismos para resolver questões ambientais ou económicas que causam outros problemas. É a visão de um inseto cuja resistência é sobejamente reforçada em oposição à fragilidade humana.

O desenrolar da narrativa vai numa direção distinta do conto de Kafka. Devido à sua metamorfose, a baratinha agora menina vai adaptar-se ao mundo dos humanos, aprender os seus códigos e esquecer-se, progressivamente, da sua origem. Ironicamente, é essa origem que lhe permite alcançar sucesso pessoal. O final regressa, de certa forma, ao pessimismo kafkiano.

Neste conto ilustrado, Anna Bouza da Costa aposta sobretudo no preto, quer para o retrato, quer para o padrão das guardas, quer para o fundo de algumas páginas. Oferece grandes planos do rosto de Georgina, acompanha o seu auto-reconhecimento na cama, quando acorda transformada em menina, acompanha-a nos acontecimentos principais da sua vida: a saltar à corda, a fazer surf, a viajar no espaço. As formas e o movimento que escolhe são sempre curvas, sugerindo, num primeiro momento, um casulo, e depois a própria metamorfose.

Tratando-se de um conto ilustrado infantil, importa ressalvar que Ana Margarida de Carvalho dá aos leitores toda a informação de que necessitam sobre a obra de Kafka. Ainda, para a compreensão desta história não é necessário conhecer aquela que a inspirou.

→ apcc.org.pt