Crítica Sara figueiredo costa 31 Outubro 2022

A África que vem

Afrotopia
Felwine Sarr
Antígona
Tradução de Marta Lança

A globalização da informação e das comunicações pôs-nos em contacto permanente com lugares do mundo onde talvez nunca coloquemos os pés, deu-nos a oportunidade de aprender coisas sobre comunidades de que nunca tínhamos ouvido falar, deixou-nos conhecer, mesmo que superficialmente, realidades que não faziam parte do nosso pensamento. Claro, podemos discutir se todo este conhecimento e toda esta comunicação atingem níveis de profundidade relevantes, mas é inegável que chegamos, com a nossa curiosidade e sem necessidade de viagens físicas, a sítios que até há umas décadas teríamos desculpa para ignorar. E apesar disso, continuamos a falar do continente africano como se de uma realidade homogénea e geograficamente pequena se tratasse. Ainda escutamos pessoas dizerem “eu estive em África e gostei muito daquela luz…”, ou lemos referências ao “desenvolvimento dos países africanos” e parece que, da Argélia à África do Sul, estamos perante um pedaço de terra passível de ser abarcado numa pequena viagem e de ser social, cultural e economicamente descrito com duas ou três frases esclarecedoras.

Ler Afrotopia, o ensaio do senegalês Felwine Sarr agora traduzido em Portugal (a publicação original é de 2016), leva-nos ao confronto com esses discursos redutores, mas sobretudo abre o horizonte para modos mais produtivos – e justos, diga-se – de abordar essa imensa geografia. Cruzando economia e política, urbanismo e criação artística, produção agrícola e industrial e comércio, pensamento e propostas de acção, o autor discute o modo como parte considerável do mundo olha para África, uma mistura de cobiça pelos recursos e paternalismo perante os problemas identificados (sempre vistos de fora e de cima), tudo sempre banhado nessa ideia de uma subalternidade que se terá instituído com o colonialismo, mas que se apresenta como condição natural.

Para além desses lugares-comuns que abundam nos discursos mais escutados sobre África, há um outro que, não se escutando literalmente, permeia todos eles: a ideia de que há um problema africano e que esse problema será resolvido, um dia e de modo cabal, por algum habitante esclarecido do hemisfério norte, que colocará o continente africano no rumo certo. Como diz Sfarr no fim do livro, «África não tem de se pôr a par de ninguém. Deve deixar de correr pelos trilhos que lhe são indicados, seguindo antes pelo caminho que ela escolher para si.» Deveria parecer óbvio, mas séculos de discursos, análises e dominações mostram o contrário, e se este é um livro que se insere claramente num debate amplo a decorrer no próprio continente africano, a sua leitura assume contornos igualmente urgentes fora dele, nos muitos outros lugares onde continuamos a receber ideias feitas sobre esta geografia sem qualquer discussão que as coloque em causa.

O que Sarr propõe neste livro é uma reflexão ampla que cruza diferentes abordagens, temas e modos críticos de pensar um espaço tão imenso e complexo. E enquanto apresenta outros debates em curso e exemplifica modos de pensar e agir que estão a acontecer agora em diferentes países, movimentos, associações e outros grupos mais ou menos informais espalhados por diferentes territórios africanos (e também pela diáspora, em tantos pontos do mundo), vai desenhando os contornos de uma utopia que não se baseie na circulação de produtos e nas rotas económicas, mas antes assuma os processos culturais como base, incluindo nestes processos a própria reflexão sobre o presente, o passado e um devir que estará nas mãos de quem a ele se dedicar.

Contrariando a ideia dual que continua a dominar o pensamento sobre África a partir do exterior, que oscila entre um apocalipse de fome, doenças e destruição e uma alvorada mística em que os primórdios da humanidade regressam numa qualquer espiritualidade de Arca de Noé, salvando o destino torpe de um planeta inteiro, Sarr reclama um outro modo de pensar no futuro: «O Afrotopos é aquele lugar outro de África cuja vinda há que apressar porque realiza as suas potencialidades felizes. (…) A Afrotopia é uma utopia activa que se propõe encontrar na realidade africana os vastos espaços do possível e fecundá-los. O desafio consiste assim em articular um pensamento que incida sobre o destino do continente africano, examinando o político, o económico, o social, o simbólico, a criatividade artística, mas também identificando os locais onde se enunciam novas práticas e novos discursos e onde se elabora essa África que vem.»

Do lado de fora do continente africano, é um privilégio acompanhar estas propostas e descobrir os debates e as práticas que vão acontecendo em torno delas. Testemunhamos, de certo modo, um presente que pode ser modificador e do qual não deixamos de fazer parte – o mundo é um só, já o sabemos, e as nossas interligações são infinitas. E enquanto confrontamos velhas ideias, há tanto gastas, mas ainda assim inconscientemente presentes, sobre África, vamos encontrando matéria para nos pensarmos noutros territórios, exemplos que podem ser orientadores, outros que rejeitaremos, outros ainda que parecem poder ser adaptados. Dialogamos, também, à distância, sobretudo quando aceitamos que não pode continuar a haver sobranceria no lugar de onde observamos e de onde queremos pronunciar-nos. E não é porque um suposto politicamente correcto nos diz que não pode, é porque esse lugar sobranceiro não nos permite aprender, duvidar ou dialogar e seria um desperdício mergulhar nesta Afrotopia sem essas capacidades activas.

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