Capitão Rosalie
Timothée de Fombelle
Isabelle Arsenault
Orfeu Negro
tradução de Dora Batalim, José Alfaro
A leitura crítica deve dar primazia aos critérios literários e estéticos sobre a subjetividade emocional. Acontece, não poucas vezes, que um livro cumpra com distinção os critérios que o colocam num lugar de incontestável qualidade para quem ajuíza sem que o crítico se identifique particularmente com o que lê. Ao invés, há livros que tocam no âmago da sua subjetividade, por razões biográficas ou psicológicas, embora não se revele muito mais do que regular.
A emoção pode enviesar um juízo. Porém, não deve ser razão, por si só, para desvalorizar uma apreciação. Capitão Rosalie tem a mestria de conseguir o pleno.
Começando pelo fim, o diálogo que se pode estabelecer com outros livros sobre o tema da guerra, da ausência ou da perda é relativamente rico. Mas o elemento determinante consiste numa dicotomia entre a realidade e a esperança, o sonho e a inocência, que se revela numa espécie de post scriptum depois da catarse trágica. Um pouco na senda do final de A Vida é Bela, de Roberto Benigni, mas aqui como uma espécie de compensação pela consciência adquirida. Neste conto o final é basilar para a complexidade narrativa e toda a crescente tensão dramática conduz o leitor para esse lugar último.
Regressando ao início: Rosalie é uma menina de cinco anos que assume uma missão secreta que se revela em dois momentos distintos. Estamos em 1917, a Europa está em guerra e a menina passa os seus dias na escola onde crianças mais velhas têm aulas, por solidariedade do professor para com a mãe que trabalha na fábrica e não tem onde a deixar. O pai, ausente na Guerra, é um fantasma no quotidiano de expectativa e saudade da mãe e, de outro modo, da filha. Rosalie permanece invisível na sala, embora repare nos alunos e teça juízos a respeito.
É ela quem narra a história, elidindo alguns dados contextuais e centrando a sua perspectiva na dita missão. Tamanho mistério assume, desde logo, uma dimensão algo fantasiosa, na medida em que é a protagonista que se auto-denomina Capitão. Mas a missão tem tudo de realista e nada de imaginativa. É o modo do discurso que perpassa a sua inocência e não o seu oculto propósito, e aqui reside a dimensão valiosa do conto. A menina replica um código militar que remete para o cenário em que vive, e é isso que as crianças fazem: reproduzem modelos e integram-nos nos seus processos lúdicos. Fá-lo, no entanto, por necessidade de conhecer a verdade e duvidar das informações que lhe chegam sobre o pai. No final, o imaginário que se tece ao longo da missão alivia precisamente a dura realidade.
Só a singeleza conferida à voz da narradora e o equilíbrio entre elipses e detalhes permitem que a personagem se apresente verosímil e o pacto ficcional funcione e impressione. Há uma poética da simplicidade que a ilustração, no traço delicado, na paleta de contrastes entre cinzas e sépias e laranjas e sobretudo na representação dos espaços interiores, enriquece. Rosalie será uma brava capitã e a arquitetura do livro tem a mestria de levar o leitor diretamente até ela, sem se deter na sólida estrutura que a sustenta.