Crítica Sara Figueiredo Costa 26 Janeiro 2023

No palco do Tejo

Espelho da Água
João Sequeira (a partir de um conto de Rui Cardoso Martins)
Polvo Edições

Lançado por ocasião do último festival Amadora BD, em Novembro passado, Espelho da Água, de João Sequeira, está agora amplamente distribuído em boa parte das livrarias. O ponto de partida deste livro de banda desenhada é um conto de Rui Cardoso Martins, publicado na edição portuguesa da revista Granta (em 2013), e aqui recriado num preto e branco que compõe um livro a muitos ritmos, centrado na difícil arte de captar as pequenas histórias que não chegam a inscrever-se para lá dos mundos de quem as vive ou pensa.

Longe da linearidade e dos tiques de didactismo que minam tantas adaptações de contos ou romances para banda desenhada, João Sequeira criou uma narrativa que tanto respeita a letra do texto que lhe deu origem como afirma a sua existência por direito próprio, criando uma dança harmoniosa que não exige o conhecimento desse texto de partida para uma fruição plena.

A trama pode resumir-se: um cacilheiro cruza as águas do rio Tejo, numa manhã como tantas outras, e a tripulação, entretida a tentar apanhar um enorme choco que por ali anda, à revelia do que ditam as regras da empresa transportadora fluvial, acaba surpreendida pela visão de um corpo a boiar. Este resumo, no entanto, é apenas o pequeno enredo que desencadeia uma narrativa feita de histórias cruzadas de gente que não se conhece, ou que apenas se cruza no vai-vem dos barcos entre Lisboa e a Margem Sul, gente que sempre trabalhou vogando nas águas do Tejo, gente que passa lá longe, sem imaginar o que esconde o leito do rio – pequenos animais de genética alterada pela poluição, objectos perdidos, corpos, às vezes, sonhos destroçados.

© Rawpixel Ltd / DR

O Tejo é, nestas pranchas, um palco que se agiganta. Não se limita a acolher as personagens e as suas histórias, também lhes reflecte o quotidiano, as alegrias e tristezas de que é feito. Utentes do cacilheiro e tripulantes, carros que passam na ponte e os seus passageiros, animais marinhos imperceptíveis aos olhos de quem cruza as águas para ir para o trabalho, até a rapariga morta, todos são parte desse rio aparentemente de águas calmas e do seu potencial para reverberar histórias. De certa forma, o Tejo é cenário, gatilho narrativo e uma espécie de personagem omnipotente, o lugar que origina todas as personagens. Essa já era uma das linhas de força do conto de Rui Cardoso Martins e João Sequeira, nas suas pranchas desenhadas com traço fluido, a recriar texturas e massas de água que se revelam pequenos mundos (como que vistos ao microscópio) e a equilibrar bem as mudanças de plano, as vinhetas que revelam pormenores das histórias de cada personagem e as grandes sequências narrativas onde todos estes elementos se inserem, manteve essa linha estruturante e disparou-a para um outro patamar, onde o verbo, não se fazendo carne, faz-se também imagem e sucessão.

É uma outra linguagem, a da banda desenhada, e o que João Sequeira traz a estas pranchas é esse exercício de criação onde imagem e texto se fundem, uma espécie de dança onde o equilíbrio é fundamental, mas onde não há regras para o ponto certo, a dosagem milagrosa. Sequeira navega estas águas com dedicação de marinheiro sabedor, ampliando rostos que tomam conta da história num dado momento, sobrepondo histórias que acontecem longe do barco e das águas, mas que ali encontram o seu reflexo, criando vinhetas que dominam toda uma prancha onde o ponto de vista é o submerso, esse exercício tão difícil de ver a partir de um lugar onde não estamos nem existimos, e que aqui se cumpre tão eficazmente.

A história da rapariga morta não é, afinal, uma história. Será um episódio a abanar a ilusão dos dias sempre iguais, um acontecimento que permite abrir a porta narrativa a toda uma sucessão de histórias e personagens que umas vezes se encontram, outra se perdem, um memento mori a lembrar cada pessoa a salvo no cacilheiro que o seu momento chegará. E nada disto se apresenta ou desenvolve em modo de moral da história, ou conclusão para arrumar o que se leu. Pelo contrário, Espelho de Água é uma espécie de pensamento narrativo que nos cruza os dias, uma vontade de agarrar aquilo que parece ser disforme, fugidio, incapaz de se arrumar como história fechada que conseguimos contar uns aos outros com princípio, meio e fim. Se tantas vezes fugimos de pensamentos semelhantes, por preguiça, desconforto ou pouca disponibilidade para aceitar que as histórias – as de vida, as narradas – não são sempre (ou quase nunca) grandiosas epopeias, este livro vem lembrar que é capaz de ser aí que está o sumo dos dias que nos cabem de vida.

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