O outro do outro
«O que no fundo quero tratar é o tema do outro. Se o outro é como eu, e o outro tem todo o direito de ser como eu, pergunto-me: até que ponto eu quero que esse outro entre e usurpe o meu espaço?», disse José Saramago em 2002, numa entrevista a propósito do recém-lançado O Homem Duplicado. Como na maioria dos seus romances, há uma pergunta (ou várias) que sobrevoa a história, mas desta vez o escritor optou por contá-la com uma carga de suspense que aproxima a narrativa a um guião de um filme de ação (de facto, em 2013 o realizador canadiano Denis Villeneuve levou o romance ao ecrã).
Passam 20 anos sobre o lançamento de O Homem Duplicado e a pergunta sobre «o outro» parece tão urgente como quando o livro foi publicado. Nos últimos tempos, em vários cantos do mundo o discurso do ódio ao estrangeiro vem ganhando força. O outro é o culpado, é perigoso e não merece nada, pregam os líderes dos partidos de extrema-direita. A erosão da rede de apoio e afeto que sustenta a sociedade, o medo, a pobreza e o tempo de incertezas são combustível para que as ideias xenófobas se espalhem.
E, de repente, valores que pareciam consagrados estão sob ameaça. O que podemos fazer para combater este retrocesso? A resposta é a defesa intransigente dos direitos (e também dos deveres) humanos, e o compromisso com os valores que, com muita luta, fomos capazes de construir nas últimas décadas.
«Nós somos o outro do outro», escreveu José Saramago. É uma ideia potente e revolucionária que pode guiar-nos nesses tempos escuros.