Catálogo de imprescindíveis
Longe dos tops de vendas, a Imprensa da Universidade de Lisboa reúne livros e autores essenciais para o pensamento e a cultura enquanto património intemporal.
As editoras publicam em função das vendas. Compreende-se, já que uma editora não deixa de ser uma empresa, por mais que prezemos a cultura como um valor imaterial, mas isso não altera o facto de a edição de livros oriundos de certos géneros e áreas do saber ter-se reduzido drasticamente nos últimos anos. Ensaio, filosofia, epistolografia, estudos biográficos ou análise literária, entre outros exemplos, são áreas que não trazem compensação monetária a quem as queira editar em livro, pelo que poucos serão os títulos novos ou as reedições que podemos encontrar por entre as fileiras de novidades que semanalmente chegam às livrarias. É verdade que algum desse vasto repositório do conhecimento universal vai estando acessível através da internet, em bibliotecas digitais que vão juntando cada vez mais livros aos seus catálogos ou em sites de instituições como universidades, museus ou centros científicos. Ainda assim, um livro é um livro.
Entre as editoras que assumem como missão a publicação de títulos não necessariamente rentáveis, mas essenciais à manutenção de um património de conhecimento e bibliografia, a Imprensa da Universidade de Lisboa (IUL) tem vindo a fazer um percurso assinalável. Ao longo do último ano, vários foram os títulos que se juntaram a um catálogo onde pontuam autores e textos sem os quais seria difícil encontrar as linhas de força do pensamento científico e cultural que nos enforma historicamente. E ainda que sair dessas linhas de força, procurando outras, menos hegemónicas, seja essencial para continuarmos a pensar, ignorar os textos fundamentais da cultura canónica ocidental não traz qualquer benefício ao pensamento, muito menos às suas urgentes rupturas.
Proust contra a biografia
Um desses textos que a IUL colocou no mercado livreiro tem a assinatura de Marcel Proust. Em 1908, o escritor francês tinha a intenção de escrever um artigo para o jornal francês Le Figaro intitulado «Contre Saint-Beuve». No último volume de Em Busca do Tempo Perdido, essa intenção ficcionaliza-se e o artigo é dado como escrito e publicado, mas a sua existência real terá de esperar um pouco mais. No ano seguinte, Proust continua a escrever sobre Charles-Augustin Sainte-Beuve, o crítico literário que apresentava um método inovador de leitura e análise, onde o positivismo era regra e a biografia do autor lido era pauta para tudo compreender. Aquilo que começara por ser o esboço de um artigo de jornal tinha já trezentas páginas.
Será apenas em 1954 que o ensaio ganhará forma impressa, agora em livro, e não na versão do artigo primeiramente imaginado por Proust. Contra Saint-Beuve, em tradução de Manuel de Freitas, é um dos mais recentes títulos publicados pela Imprensa da Universidade de Lisboa. Inclui o texto do autor, bem como uma introdução de Miguel Tamen que permite contextualizar a obra e, mais do que isso, lê-la à luz de algumas interrogações (que motivo terá levado Proust a criticar um crítico que já tinha morrido quatro décadas) e assinalar-lhe algumas particularidades (como a hipótese de Proust ter mais semelhanças com Saint-Beuve do que o texto quer admitir). Contrapondo a ideia de que o eu que escreve uma obra literária não é necessariamente coincidente com aquilo que publicamente pode conhecer-se da pessoa que a escreve à ideia de que a interpretação e o conhecimento de uma obra dependem sobretudo da biografia do seu autor, Proust deixa neste texto uma série de pensamentos relevantes para a leitura da sua própria obra e imprescindíveis para situar a discussão sobre criação e recepção literária no final do século XIX.
Romantismo em marcha
Outro dos títulos publicados nos últimos meses, também no domínio dos estudos literários, é a Conversa Sobre a Poesia, um dos textos fundadores do Primeiro Romantismo Alemão. Assinado por Friedrich Schlegel, o poeta alemão que escreveu abundamentemente sobre temas como a linguística ou a religião, o livro apresenta-se sob a forma de um diálogo a várias vozes. Entre essas vozes, reconhecem-se com a acuidade possível as ideias de Novalis, August Wilhelm, Caroline Schlegel e Friedrich Schelling, entre outros e para além do próprio autor, mas reconhece-se sobretudo o ideário da estética romântica, a importância da mitologia e da crítica e a vontade de explorar até ao limite a discussão sobre a representação da poesia.
«Eis como vejo as coisas. A poesia está tão profundamente enraizada no homem, que cresce de forma desenfreada até nas circunstâncias mais desfavoráveis. Da mesma maneira que encontramos agora em quase todos os povos canções, histórias em circulação e alguma espécie de obra dramática, ainda que rudimentar, de que se faz uso, também na nossa época nada fantástica, nos verdadeiros meios da prosa, e com isso refiro-me às pessoas ditas eruditas e cultas, também aí encontramos alguns indivíduos que pressentiram em si mesmos e expressaram uma rara originalidade da fantasia, embora estivessem ainda muito longe da verdadeira arte.» (pg.56) Pouca apetência haveria para discutir sobre poesia nestes termos, hoje, e não apenas pela referência exclusiva ao poeta como ser masculino… O ser datado é parte imprescindível deste texto, mas não é a sua actualidade que importa reconhecer, antes o seu peso fundacional. Ignorar origens, caminhos e desvios nunca foi bom método para pensar e o resgate de um texto como este para o rol de livros disponíveis nas livrarias é um contributo importante para essa actividade tão essencial.
Biblioteca essencial
A Marcel Proust e Friedrich Schlegel juntam-se, no catálogo da Imprensa da Universidade de Lisboa, autores como Albert Einstein e Max Born (em troca de correspondência), Melanie Klein e Joan Riviere (dissecando questões da psicanálise), Fílon de Alexandria (com Embaixada a Gaio e outros textos) ou Alexis de Tocqueville (com O Antigo Regime e a Revolução). Astronomia, sociologia, religião, ciências várias e estudos políticos agregam-se aos estudos literários, formando uma constelação de títulos que nunca serão os mais vendidos do mês, mas dos quais não podemos prescindir enquanto comunidade.
Contra Saint-Beuve e Conversa Sobre a Poesia são textos importantes para os estudos literários, como outros livros do catálogo da IUL são importantes para os estudos gerais, e a sua disponibilidade em português e nas livrarias seria dificilmente compatível com um plano editorial que dependesse do sucesso de vendas. Não significa isto que não haja interesse do público leitor por este livro, mas seguramente esse interesse não se multiplicará pelo número de compradores necessários para que os custos de produção e impressão se ultrapassem. Muito menos para que dêem lucro. E é exactamente aqui, neste desequilíbrio, que se compreende quão essenciais são as editoras que, associando-se a instituições que têm como missão a conservação e a partilha do conhecimento, publicam esses títulos que nunca serão bestsellers. E, no entanto, a sua existência nas livrarias permite que continuemos a pensar sem fazer tábua rasa da memória e da história.