Destaque Andreia Brites 20 Dezembro 2021
Eva Barros, Catarina Sobral e Bruno Santos

Contraconto: uma tríade ao quadrado

Fotos © David Cachopo

Contraconto nasceu de um desejo do guitarrista Bruno Santos de musicar textos infantojuvenis. Com Catarina Sobral ao leme da seleção e criação de contos e poemas e com Eva Barros a interpretá-los, surgiu o podcast que a Antena 2 tem vindo a transmitir regularmente às 5ªs feiras durante todo o ano de 2021. O projeto não ficou por aqui e subiu ao palco a 5 e a 12 de dezembro. Agora, quem quiser ainda pode ouvir o podcast ou ler os contos ilustrados num diário que o trio editou.

O Podcast

“Já pensava há muito em fazer uma coisa deste género e assim fugir um pouco de onde me movo habitualmente. Passei os últimos 20 anos envolvido em concertos, gravações, prática diária de guitarra, compor, ensaios e afins. A música, a guitarra e o jazz foram sempre o centro das atenções. Musicar pequenos textos infantis era um desejo. A intenção foi claramente desafiar-me e concretizar um desejo antigo e juntar universos como a música, a palavra, representação, ilustração.”, explica Bruno Santos. “Sentia necessidade de alargar um pouco o meu raio de ação e a meia idade apresentou-me interrogações, dúvidas e opções distintas: continuar no meu canto ou espreitar cá para fora. Senti que era altura de procurar alguma coisa nova que me pusesse à prova e que me obrigasse a criar com outras ferramentas e outras pessoas.”

Ao ouvir cada podcast o ouvinte não se dá conta dos vários elementos musicais que dão à voz narrativa uma profundidade espacial e temporal. Não será um caminho unívoco. Também o ritmo das palavras, a sua entoação, as pausas, condicionam e orientam os efeitos da guitarra, os sons da matéria ou dos animais sugeridos neste diálogo entre o representado e o abstrato. Um tema é distinto do anterior e do que lhe sucede, há os mais harmoniosos, outros mais dissonantes, melodia e rupturas, pausas abruptas e desvaneceres suaves.

É o próprio guitarrista que explica o processo: “Inicialmente comecei por musicar um ou dois textos antes de serem lidos, mas percebi que não faria muito sentido. A Eva surpreendia-me constantemente. A expressão, intensidade, as várias personagens que criou, o ritmo, a cadência com que lia. Tudo isso teve uma influência brutal na música. E musicar antes da locução podia funcionar como uma prisão para a Eva. A Catarina recolhia os textos, organizava e fazia o alinhamento mensal, a Eva lia e eu colocava música. Devolvia à Eva e a Catarina para ter o aval final e estava feito.”

O sentido de unidade que faz de cada peça um objeto singular, apreendido como um todo, nasce assim desta cumplicidade que se vai afinando e que tem no encontro entre palavra, voz e música o seu polo agregador. “Costuma dizer-se que um texto lido por mil pessoas torna-se em mil textos. Os textos vivem das interpretações que cada um lhes dá, desde quem escreve a quem os lê, quem os ilustra, quem os interpreta e por isso creio que eles são vivos por si só. Ao dar voz e corpo a estes textos, estou a levar ao espectador a nossa interpretação dos mesmos e o público irá levar a sua com ele.”, acrescenta a atriz e narradora Eva Barros.

Os 41 episódios disponíveis podem ser escutados pela ordem que se desejar porque se apresentam independentes. Os autores dos textos são diversos e o seu estilo também se reconhece, aqui e ali. Catarina Sobral, Ana Pessoa, Joana Estrela, Isabel Minhós Martins, Rita Taborda Duarte ou David Machado são mais óbvios no universo infantojuvenil. Ricardo Henriques ou Inês Fonseca Santos já contam com obra própria, embora com menor produção. Mas há surpresas como José Tolentino Mendonça ou Yvette Centeno. Os temas vão desde o material escolar a uma viagem de carro, à meteorologia, higiene, momentos de ócio, animais mais ou menos domésticos, lugares reais e imaginários, brincadeiras e movimentos, paixões e desencontros, entre descrições de acontecimentos, recordações ou reflexões com estilos muito distintos. Coube a Catarina Sobral a responsabilidade desta seleção de luxo. “Comecei por falar com escritores amigos, que admiro e que escrevem para o público infanto-juvenil, em exclusivo ou não. Alguns não são apenas escritores, como é o caso da Joana Estrela, do Miguel Fragata e da Inês Barahona, para dar alguns exemplos. E programámos os primeiros dois meses com textos meus, e outros micro-contos e poemas de autores que enviaram o que tinham nas gavetas, pastas do computador e notas de telemóvel, incluindo alguns da Yvette Centeno, que o Bruno conhece e convidou. Foi também ele quem convidou o José Tolentino Mendonça. Com o tempo foram-nos faltando textos e alarguei os meus convites a outros escritores que não conhecia pessoalmente mas que prontamente aceitaram, talvez porque a rubrica já tivesse algum corpus e conseguissem reconhecer a qualidade do trabalho do Bruno e da Eva (sem que precisassem confiar cegamente em mim). Os textos eram todos muito bons e eu gostei da variedade, por isso só deixei dois de fora. Tínhamos alguma margem para a extensão de cada episódio e, portanto, do texto, uma vez que a programação da Antena 2 é flexível e entre os 2 e os 8 minutos poderíamos tudo. E embora alguns textos fossem mais dedicados às crianças do que outros, eu quis deixar o podcast sem uma direcção etária muito específica.”

O salto para o palco

Quando o trio de criadores decidiu transformar este produto audível num espetáculo foi necessário dar-lhe um corpo uno, sequencial e coerente. Quem se prestar a ouvir os 14 podcasts escolhidos para o espetáculo (que também podem ser escutados no blog do Contraconto pela ordem com que entram em cena) terá provavelmente uma sensação bem diferente. Este conjunto consegue, através da voz subjetiva de uma primeira pessoa, alcançar outra unidade narrativa, como refere Catarina Sobral: “Muitos dos nossos textos preferidos estavam escritos na primeira pessoa, tinham humor, e quase não se sentia que pudessem ter vozes distintas. Ao fazermos essa escolha percebemos que falavam de momentos específicos do calendário, como as férias e as aulas, ou que tinham temas em comum (o amor e o silêncio). Assim a ideia foi ganhando forma e fomos acrescentando outros textos que não estão na terceira pessoa e por isso também poderiam ser entradas de diário. Tínhamos de incorporar pelo menos dois poemas da Ana Pessoa, a maior contribuidora de textos do Contraconto! E assim, abrimos o espectáculo com a pergunta da Ana «O que é isto?» e fechamos com um verso do David Machado que diz «não deixes o mundo como o encontraste.»

São entradas de um diário menos evidente mas é o tempo que as une, e a partir dessa ideia prévia tudo faz outro sentido: a interpretação de Eva Barros é a voz de Joana, no seu entusiasmo, tédio, hesitação, consolo, ansiedade, espanto. Agora cada entoação, cada estrutura narrativa ou poética, cada tom é uma única personagem. A música pauta essas emoções de descoberta, reconhecimento, acidentes, desejos. Se a autonomia das peças as enriquecia em diversidade, o fio narrativo concede-lhes densidade.

Eva Barros assume que essa foi a grande diferença: “Trabalhar a dramaturgia de textos tão diferentes de vários autores, para encontrarmos, em cada um deles, um ponto onde, dramaturgicamente se pudessem encontrar de forma a dar uma narrativa lógica ao espetáculo. Encaixá-los uns nos outros e respeitar a identidade de cada texto de forma a todos juntos terem uma identidade, a identidade “Contraconto”, é sem dúvida, a grande diferença para o podcast e o grande desafio.”

Para o músico, o espetáculo também teve outro nível de exigência, menos experimental por um lado, com mais risco por outro. “Primeiro traz aquilo que distingue uma gravação de uma actuação ao vivo. Não há segundo take. E logo aí tive que pensar um pouco mais ou definir alguns pontos de partida porque no podcast muitas vezes ia tocando à medida que ia ouvindo a locução do Eva. Ia experimentando. Compondo em tempo real, por assim dizer. O espectáculo também pressupõe um guião ou um fio condutor que liga e cola todos os textos e todos os momentos, ao contrário do podcast que era pensado episódio a episódio. Digo musicalmente. Também fui obrigado, com muito gosto, a pequenos momentos de interacção com a Eva ou a curtos diálogos. Momentos em que a guitarra ficou pousada na estante. Em relação aos instrumentos, simplifiquei. Uso quase sempre a mesma guitarra, uma eléctrica, com alguns efeitos pontuais e um instrumento tradicional madeirense, chamado machete. Uma espécie de cavaquinho. Musicalmente é muito mais exigente, mas também mais desafiante. Mas no meu dia a dia enquanto músico, prefiro tocar ao vivo do que gravar em estúdio. Por isso, está tudo bem!”

No espetáculo há mais componentes a acrescentar à narração musicada. Para além de estarem e palco Eva Barros e Bruno Santos, narrando e tocando ao vivo, há toda uma panóplia de adereços e luzes a que ainda acresce a projeção de ilustrações de Catarina Sobral. Estes elementos têm também uma função agregadora que contribui para a unidade do espetáculo.

“O espectáculo é um híbrido entre concerto e leitura encenada, o que poderia ficar um pouco estéril mesmo com a movimentação e a interacção entre os dois actores. Era necessário brincar com a velocidade dos textos, com a luz, ter alguns objectos em cena que ajudassem à dramaturgia. Por outro lado, precisávamos de mostrar o tempo a passar e lembrámo-nos de ter um calendário de parede. Depois optámos por projectar o calendário, a separar todos os meses, o que tornava a movimentação da Eva mais fluida, e nesse caso, porque não ter as ilustrações projectadas em fundo também? Desenhei então esta personagem, a Joana (porque os únicos textos que têm diálogo são os da Joana Estrela), e desenhei a casa dela, a escola e todos os outros elementos de que ela fala. No palco quisemos representar o sítio onde ela escreve o diário: o seu quarto, com alguns brinquedos, livros, pantufas, almofadas, cortinados e uma janela.”, explica a ilustradora.

O testemunho

Neste diálogo artístico interdisciplinar, o livro chega com o espetáculo, prolongando e agregando texto, música, interpretação e imagem. O movimento do palco e o seu momento efémero ganham dimensão de testemunho, de memória e sobretudo de apropriação.

É o desejo de todos, nas palavras de Catarina Sobral: “Os textos seleccionados mantiveram, na sua maioria, as músicas originais do podcast. O livro tem as mesmas ilustrações do espectáculo, adaptadas para acomodar o texto. Por isso, tanto o livro-diário como o espectáculo são uma versão pequena do podcast, mais narrativa e com desenhos. Mas o espectáculo é um objecto mais vivo, sempre diferente. O diário acaba por ser uma forma de o materializar, de o levar para casa. Para além de materializar o espectáculo e permitir que possamos ler os textos ao nosso ritmo, também tem um QR code que reenvia para os áudios do espectáculo, e é também um convite à participação do público, uma vez que os textos são apenas os separadores dos meses do diário que o leitor irá escrever. Ou assim esperamos!”

O projeto, que começou como um desafio sentido e pensado por Bruno Santos, em resposta a um contexto pessoal e circunstancial, ganhou formas e caminhos múltiplos. Em tom de balanço, são as palavras do próprio músico as que melhor definem a experiência.

“O mais surpreendente foi o modo como todas as peças se encaixaram de forma natural. No início vi um puzzle com centenas de peças minúsculas e em pouco tempo tudo começou a juntar-se e a fazer sentido. Surpreendeu-me, por exemplo, como a voz da Eva mudava o sentido de alguns textos e consequentemente a música. Surpreendeu-me a generosidade de tanta gente que nos ajudou e cedeu-nos material, textos, para trabalhar. Surpreendeu-me a arte e capacidade de trabalho da Catarina. Sabia que ia trabalhar com duas pessoas muito talentosas, mas hoje em dia não é tão fácil encontrar pessoas que se envolvam tanto como a Catarina e a Eva fizeram desde início. Foi e tem sido fácil trabalhar com as duas. E isso surpreendeu-me. A honestidade, rigor, sentido de humor e mestria das duas, aliada a esse compromisso.”

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