O regresso da Mamute

Mamute #1 (segunda série)
VVAA (ed. Gonçalo Mira e Susana Moreira Marques)
Zigurate
A Mamute teve uma primeira vida em 2021 e vale a pena conhecer-lhe a história, para situarmos o aparecimento desta nova versão. No editorial do número 1, Gonçalo Mira, o editor, explicava assim o nascimento da revista, depois de contar que recebera uma pequena herança, que decidira investi-la na criação de uma revista e que, ainda por cima, se despedira do emprego para poder dedicar-se ao projecto, tendo enfrentado uma série de obstáculos até conseguir materializar aquela primeira edição: «A resposta às minhas dúvidas está nas vossas mãos. A Mamute existe. Depois de existir, parece-me mais fácil, muito mais fácil, dar-lhe continuidade. Agora, resta-me continuar a trabalhar para que cada número seja tão bom ou melhor do que este primeiro e com isso convencer-vos, leitores, a apostarem neste projecto, a divulgarem-no, a comprarem todos os números, a participarem na nossa comunidade.» Seguiram-se outras duas, mas a primeira vida da Mamute ficou-se pelos três números e só quem nunca se envolveu na criação e edição de uma revista de carácter literário pensará em derrota. Foram três edições repletas de bons textos, trazendo para um espaço público e de partilha temas, vozes e modos de pensar que contaram para alguma coisa. Ainda contam, porque o papel impresso mantém este sortilégio de continuar a ter voz mesmo depois de um travão qualquer lhe impedir a continuidade.
A revista ganhou agora um novo fôlego na Zigurate, editora criada por Carlos Vaz Marques cujo catálogo vive da não-ficção. Podemos dizer que a Mamute encontrou a casa mais adequada para o seu projecto, na medida em que os textos que aqui se reúnem dialogam de modo franco com alguns livros do catálogo e, além disso, poderiam crescer e expandir-se até ganharem a lombada, maior ou menos, que os sustentaria enquanto volumes únicos. Nesta nova vida, a revista tem agora dois editores, juntando-se Susana Moreira Marques a Gonçalo Mira para pensar cada número, acolher os textos que chegam, seleccioná-los, eventualmente encomendar outros. Como quase tudo, a chamada não-ficção literária afirmou-se em Portugal muito depois de ter conquistado o seu espaço editorial noutras geografias, mas em vez de lamentarmos o crónico atraso, saudemos a aposta desta e de outras editoras numa forma de escrita que, como diz Susana Moreira Marques num dos textos do editorial, é uma «literatura que escreve a partir do real, para o real, ou, melhor dito, perante o real. Confrontando-se com ele.»
Neste primeiro número da nova Mamute há textos de Frederico Batista, Joana Bértholo, Andreia C. Faria, Isabel Minhós Martins, Diogo Paiva, Marta Pessoa e Andréia Azevedo Soares. Os temas são vários, mesmo dentro de cada texto, mas ao atravessar estas cento e poucas páginas de revista fica-se com a ideia de que o que aqui se publica reflecte – não de um, mas de muitos modos – o tempo que nos calhou, sempre a partir de uma ideia de subjectividade, naturalmente, mas ainda assim permitindo apurar questões comuns, das relações entre mães/pais e filhos, com todas as expectativas nem sempre sensatas que uma imagem idílica e publicitária tende a projectar, como nos textos de Frederico Batista e Andréia Azevedo Soares, à ideia de futuro a partir do que fomos guardando das histórias daqueles e daquelas que nos antecederam, como nos textos de Marta Pessoa e Isabel Minhós Martins, por exemplo.
Por aqui também passam temas como a Guerra Colonial, a relação entre cidade e campo, as mudanças transversais que envolvem consumo, produção, modos de vida e crise climática, mas também a literatura, tanto do ponto de vista da criação como dos efeitos que a sua existência desencadeia em quem lê. Escrito assim, pode parecer que os textos desta Mamute são sobre tudo e sobre nada, como se fossem apenas um arrazoado de desabafos pessoais, e isso está muito longe da verdade. «Como sobreviver a uma onda de calor», de Isabel Minhós Martins, convoca a infância a partir da aldeia da avó, da casa familiar, das brincadeiras que se revelaram, entretanto, aprendizagens para o futuro, e com isso reflecte sobre o que andamos a fazer ao planeta e quão preparados estaremos para enfrentar o futuro mais próximo se não conhecermos e não soubermos habitar estes espaços onde a terra ainda dá fruto, onde a água ainda é de toda a gente e onde a partilha permanece forma segura de sobreviver. «Um outro Keif», de Joana Bértholo, convoca essa espécie de pensamento mágico que por vezes desencadeamos a partir da literatura, assumindo-a como explicação da própria vida, oráculo, conjuro ou manual de soluções, e se por um lado arruma essa possibilidade num exercício racional, não deixa de manter em tensão um fio que podemos puxar, a qualquer altura, mesmo que não queiramos ceder à possibilidade de fazer dos textos que nos atravessam pitonisas.
Da reflexão de Frederico Baptista sobre a paternidade à divagação de Andreia C. Faria em torno da morte e do modo como nos confere humanidade, os textos que inauguram esta segunda série da Mamute são pessoalíssimos, como se espera da não-ficção assumidamente autoral, mas abertos à identificação e à criação de relações fortes a partir da leitura, como se espera da boa literatura. Que venham os próximos números desta revista com nome de animal extinto, porque bem precisamos de nos debruçar sobre nós e o mundo, equilibrando a atenção ao que se nos impõe e o cuidado com o que guardamos nas meninges, no corpo e na memória.