
Porque foi comigo
Vivemos como se fôssemos máquinas concebidas para durar. Com essa premissa, permitimo-nos sonhar: almejamos pagar uma casa em trinta anos, um automóvel melhor em cinco e planejamos viagens para o ano que vem. Para lograr tais propósitos, trabalhamos mais, dormimos menos, desperdiçamos horas nas redes, fumamos, bebemos pouca água, consumimos carne vermelha ou açúcar em excesso. Cada qual carrega sua ambição e seu “viciozinho” de estimação, na certeza de que seus ossos e carnes robustos resistirão. E, ainda que, de vez em quando, ouçamos o conselho médico, estamos convencidos de que nada de verdadeiramente mal nos alcançará.
Até o momento em que uma pedrinha se aloja no lugar certo. E nossa fragilidade se manifesta. Não que nossa máquina seja incompetente; é que o destino não prometeu competência alguma. Prometeu contingência. E nós nos esquecemos.
Não foi necessário um grande golpe, como ser acometida por uma síndrome de nome impronunciável ou por algo de maior monta, uma guerra, uma nova pandemia ou uma catástrofe natural. Apenas uma ridícula traição: a obstrução de um rim. Foi assim que uma mísera pedrinha ia me arrastando para a barca de Caronte em menos de vinte e quatro horas.
Nem sequer houve um deslize da minha parte que justificasse a deslealdade desta carcaça, daí minha indignação com a perfídia perpetrada pelo corpo contra mim. A desfaçatez de tentar me levar com uma sabotagem. Depois da obstrução, instalou-se uma infecção galopante que me colocou três noites nos Cuidados Intensivos. E as funções vitais, que eu dava por garantidas na minha máquina, entraram em dissonância. Quase fui.
A trivialidade do mecanismo que nos ameaça tem uma perversidade própria: ofende nossa vaidade de seres que se julgam feitos para durar. Teria sido um final sem pompa, quase ridículo. Eu, que sempre fui tão palavrosa, terminaria de forma lacônica? Por outro lado, seria trágico e literalmente poético: trágico, pois aconteceria com menos de um mês de distância do falecimento do meu irmão mais novo; e literalmente poético porque “no meio do caminho tinha (mesmo) uma pedra”.
Porém, de acordo com meu filho mais velho, eu teria me convertido em “alma penada”. Ficaria indignadíssima ao descobrir, já lá no Beleléu, que havia esticado o pernil, me finado, batido a caçoleta, as botas, morrido tão bestamente. Revoltada, não aceitaria a minha nova condição e, com toda certeza, tentaria regressar. Imaginem o problema: eu zanzando pelas encruzilhadas e caminhos? Visitando alguns de vocês?
Ironicamente, esse mesmo corpo que me apunhalava lutou para me salvar. Por isso resisti e estou aqui para escrever. O que conto não acrescenta nada de novo do ponto de vista filosófico ou moral; é um lugar-comum sem originalidade, o óbvio ululante (para citar Nelson Rodrigues): “todos morreremos um dia”, “só morre quem está vivo”, “pagar e morrer, quanto mais tarde melhor”… Nenhuma dessas verdades banais traz qualquer transformação — exceto quando ocorre conosco. Não morri naquele dia, no seguinte e nem nos outros que continuaram a se suceder. Apesar do meu riso — porque sempre prefiro rir — é ainda com terror e estupefação, sobretudo com muito respeito, que penso na morte me observando tão de perto.
Talvez haja uma lição: se a vida pode ser interrompida por uma coisinha assim, talvez também seja libertador perceber que a grandeza de uma existência não dependa de um início, nem de um meio e menos ainda de um final pomposo. A nossa mesquinhez é irrelevante. O que conta é tolo e belo ao mesmo tempo, pois uma simples pedra é capaz de desmontar tudo. Viver, sabe-se lá por quanto tempo, daqui em diante, passa por não esquecer a companhia dessa pequenina pedra.
…Nunca esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.
(C.D.A.)