
André Lemos: um gancho nas barbas do mundo
Na publicação do novo fanzine de André Lemos, uma conversa sobre processos de criação, o desconcerto do mundo e a resistência que a auto-edição continua a praticar.
O trabalho de André Lemos espalha-se por fanzines, edições de pequena tiragem, paredes que entretanto já desabaram, trabalhos colectivos e muitas páginas que o gesto arquivístico mais metódico terá dificuldade em reunir, mesmo que seja um corpo de trabalho extenso, no tempo e no espaço. A sua publicação mais recente intitula-se Gancho e nasce de um processo que começou com a preparação de uma exposição chamada Fermento dos Aflitos. Quem passou por Alcáçovas, entre Junho e Setembro deste ano, pôde ver as imagens criadas pelo autor para essa exposição, que decorreu no contexto da Social Reproduction Summer School, uma iniciativa da Cooperativa Oficina Rua do Relógio. Recuando ainda mais, tudo começou com um desafio lançado a André Lemos numa das feiras de edição independente onde vendia as suas publicações, como contou o autor à Blimunda: «Esta minha colaboração com a Cooperativa Oficina Rua do Relógio Alcáçovas começou com uma visita da Luísa Veloso e o António João Lima a uma das edições da Raia onde estava presente com a minha Opuntia books, isto um ano ou dois antes deste evento, e que deu origem a uma conversa e um convite para uma futura colaboração. Eles eram conhecedores e apreciadores do meu trabalho e explicaram-me que estavam a formar uma cooperativa para começarem a produzir eventos em Alcáçovas e que, a haver uma exposição, queriam que fosse eu o primeiro. Foi passando tempo mas o convite ficou sempre presente e acordado. Este ano, tudo começou a ganhar corpo e objectivo. Com o projecto e tema definido, eu propus expor, para além de desenhos A4 (o meu formato normal), também alguns de maior formato (70 x 50 cm) feitos propositadamente para esta exposição, para além de editarmos uma publicação, algo que também sempre foi falado desde o início.»

Fermento dos Aflitos integrou a Social Reproduction Summer School, ainda que André Lemos não tenha estado em residência nesse encontro, participando como artista convidado e não como orador, Mesmo assim, essa participação acabou por reflectir-se nas páginas de Gancho, uma publicação que podemos classificar como fanzine, tendo em conta o seu processo de criação, edição e distribuição: «Todo este evento tinha esse núcleo central de pensamento e debate sobre o tema Social Reproduction, mas comportava também a minha exposição e zine, concertos, performances, refeições em colectivo, tudo num equilíbrio saudável e comunitário.» O autor criou uma série de trabalhos novos propositadamente para a exposição, juntando-os a outros, recentes, que se relacionavam organicamente com os temas em discussão na Summer School: «Rapidamente percebi que o meu trabalho já incluía de certa maneira estas preocupações, dúvidas, questões mas de uma maneira menos académica digamos assim. Como tal, optei por não aprofundar muito os temas teóricos em demasia – não é a minha área – e olhar pelo meu prisma artístico e pessoal como sempre fiz, o mundo e principalmente o que se passa cá por casa. Usei a mesma estratégia para a exposição como para a edição do zine, que, aliás, foram sendo preparadas em paralelo.»
O resultado andou pelas paredes da Oficina do Relógio Alcáçovas e agora pode ler-se, com outra configuração e novas relações, nas páginas deste Gancho. Como acontece regularmente nas publicações de André Lemos, por estas páginas desfilam uma série de imagens que podem ler-se/ver-se individualmente, cada um com sub-textos, ângulos escondidos e desafios capazes de prenderem a atenção e darem corda ao pensamento durante muito tempo. Num processo de leitura mais atento, percebe-se que essas imagens têm uma leitura colectiva, não necessariamente sequencial, mas de conjunto, o que abre a porta a reflexões mais robustas sobre os temas que vão ocupando o papel e sobressaindo, quase sempre com pouco ou nenhum texto. Como nos disse o autor, «apesar de os desenhos terem sido feitos individualmente e em alturas separadas sem pensar muito no resultado final, a escolha e paginação do zine, comporta sem dúvida um sentido de partilha e contaminação entre eles. Foi objectivo esse propósito, mesmo que não se espelhe de uma maneira totalmente explícita – que tento evitar – nem sequencial. Foi uma escolha comprometida com a minha visão destes temas a partir de desenhos já produzidos, páginas com pormenores de desenhos maiores presentes na exposição e ainda algumas imagens de ruptura/ligação tiradas da net.»

A auto-edição, a publicação de fanzines e toda uma ebulição permanente de publicações que muitas vezes escapam ao radar da crítica e aos leitores que se ficam pelas cadeias livreiras tem esta particularidade de tornar difícil uma divulgação mais ampla do que se vai fazendo, concretamente no campo das artes visuais, onde André Lemos tem feito um percurso que importa conhecer. Quase todos os seus trabalhos se publicam desta forma, em fanzines ou publicações de pequena tiragem, sempre cuidadosamente pensadas e elaboradas. Gancho não foge à regra e no seu miolo reúnem-se imagens que, mais do reflexão sobre o mundo e o seu desconcerto, são respostas. Não exactamente no sentido de apontarem um caminho, ou de indicarem qual é a solução para os muitos desequilíbrios que nos estruturam, mas muitas vezes no sentido de réplica, resposta, quase como num combate de boxe. E não é difícil imaginar um combate quando a desigualdade se impõe como estrutura. O modo como o trabalho se tornou imposição sem alternativa, como as guerra se tornaram modo permanente de enriquecimento ou como os dias são cada vez mais moldados por um barómetro que junta felicidade e consumo na mesma tabela andam por este Gancho, a par com outros temas reconhecíveis, todos eles relacionando-se entre si. Na senda de trabalhos anteriores, também Gancho é um fanzine profundamente político, não no sentido tosco que a palavra assumiu nos últimos anos (com consequências nefastas, diga-se), mas no sentido etimológico e mais extenso da palavra, ou seja, a forma como vivemos uns com os outros, como escolhemos organizar-nos, as decisões que tomamos, os recursos, a maneira como usamos os recursos, mas também o modo como reagimos à desigualdade, às imposições de certos poderes, à falta de esperança que nos impõem de forma intensa e diariamente, quando nos transformam sobretudo em consumidores, sem outra alternativa que não consumir aquilo que nos é apresentado. André Lemos revê-se nesta leitura, confirmando que o seu trabalho «é muitas vezes político, na forma de intervir, é a minha ferramenta de olhar e pensar o mundo e o que me rodeia com sentido crítico e, nesse sentido, escolho muitas vezes não dar a outra face. Sou uma pessoa atenta ao que me rodeia, as dificuldades por que passamos, as desigualdades sociais, o problema climático global (desenho muito natureza e animais), as ascenções de populismos e fascismos vários, a precariedade (tão presente nesta área das artes), etc. No entanto, tento que o meu trabalho não caia num registo demasiado óbvio ou “panfletário”, preferindo por vezes uma abordagem menos clara e mais de duplo sentido, ou com confronto entre elementos como imagem e palavras que parecem antagónicas à partida, sobreposição de pontos de vista, um olhar enviesado e um humor que gosto de usar, muitas vezes negro e um pouco desesperado com falta de esperança, sim.»
Resgatar o que pode sobrar dessa esperança que se vai esfumando passa pela criação, algo que se confirma nas páginas de Gancho, mas também pelos modos de editar, publicar e fazer circular o trabalho que se cria. Se é verdade que se arrisca pouco no mercado editorial mais conforme ao circuito das grandes cadeias livreiras, sendo raras as editoras que apostam em trabalhos menos conformes ao gosto desse mercado, ou às ideias feitas que o alimentam, também é verdade que muitos autores que trabalham no registo da auto-edição não o fazem apenas, ou sequer, por não terem espaço nas chancelas comerciais. É o caso de André Lemos, que há anos mantém activa a sua Opuntia Books, editora caseira cujo nome se reconhece há muito por entre as bancas das feiras de edição. Para o autor, há um ponto de partida que tem de estar sempre salvaguardado: «não vendo a minha liberdade criativa ao desbarato e por isso trilho há muito tempo um caminho mais independente em matéria editorial, que me serve e preenche de alguma forma; é aí que encontro quem compreenda melhor o que quero fazer e expressar criativamente.»

A edição e os seus modos incorporam o trabalho de André Lemos, tanto quanto as linhas, as manchas e as imagens compostas que cria. Não é que o meio seja, neste caso, a mensagem, recuperando a frase de Marshall McLuhan, que ganha ecos cada vez mais ensurdecedores à medida que os anos passam, mas as criações de Lemos encontram no seu modus operandi editorial um espaço que lhes acrescenta sentido: «A auto-edição apareceu, quase há vinte anos com a minha editora Opuntia Books, muito por falta de espaço onde pudesse editar cá em Portugal, na verdade, e na altura penso que estava a publicar mais lá fora, mas também para libertar-me um pouco das edições colectivas. Tenho já um corpo de trabalho extenso e sei claramente que o meu trabalho não é para todos os públicos, e assim o quero manter, mas de facto, cá em Portugal sempre houve e há um défice de apostas em algo um pouco fora da norma por parte de editoras maiores ou com mais visibilidade e alcance. Portanto, é muito uma escolha pessoal de auto-editar e colaborar com editoras de cariz mais independente, sim, tanto cá como lá fora, mas não invalida que nunca tenha tido um convite interessante de alguma editora mais comercial. Eu sou de uma geração que cresceu
verdadeiramente com os fanzines e toda uma cultura DIY [do it yourself]. Sempre foi um lugar de troca de experiências e liberdade criativa que quero continuar a cultivar e fazer crescer sem dúvida. Posso dizer que sim, esta atitude editorial incorpora muito da minha obra e o que quero fazer.» Com chancela da Oficina Rua do Relógio Alcáçovas, Gancho circula por aí, entre feiras e pequenos espaços, assegurando que vale a pena procurar procurar pelo mundo longe do ruído do marketing e das promessas supostamente seguras das prateleiras mais cotadas.