Um Cossaco na batalha contra o mundo
Numa banda desenhada a quatro mãos, Arthur Larrue e Xavier Almeida ficcionam a história improvável de um cossaco que lutou contra os nazis e foi morto pelos russos, antes de ser transformado em herói pelos mesmos que o fizeram desaparecer.
A história de Alexandrovitch Alekhine podia ser uma ficção. Nascido na Rússia, jogador de xadrez com inegável talento, foi acusado de espionagem pelo governo soviético, depois ilibado, adoptou a nacionalidade francesa, passou pela II Guerra Mundial jogando xadrez em eventos organizados pelos nazis, acabou por morrer em Portugal, em 1946, nesse ninho de espiões e futuros romances policiais que era o Estoril de então. As causas da sua morte permanecem envoltas em mistério, pelo que a vida de Alekhine há muito pedia que alguém a romanceasse. Foi o que fez Arthur Larrue, escritor francês há vários anos a viver em Portugal.
A partir do romance La diagonale Alekhine (editado em França pela Gallimard), Larrue juntou-se ao ilustrador e autor de banda desenhada Xavier Almeida, com quem já havia trabalhado. O resultado é Zap, um pequeno livro a preto e branco com uma história em banda desenhada que nasceu entre as páginas de La diagonale Alekhine. No entanto, Zap não é uma versão do romance de Arthur Larrue, nem sequer tem Alexandrovitch Alekhine como personagem principal. A sua narrativa alimenta-se de um capítulo do romance, o vigésimo segundo, que funciona um pouco à parte da trama principal, como explicou Xavier Almeida à Blimunda: «É quase um parêntesis no livro. Fizemos algumas adaptações, mas o essencial é o que está nesse capítulo. E não é uma história sobre o Alexandrovitch Alekhine, ainda que ele também apareça. Aqui, uma outra personagem ganha carácter principal.»
Um livro nas paredes de Santos-o-Velho
Num prédio devoluto da Rua do Cura, na zona lisboeta de Santos-o-Velho, a figura barbuda de Zap andava por várias paredes do 2ºandar. Foi ali que Arthur Larrue e Xavier Almeida mostraram as pranchas originais do seu livro a quem as quis ver, preferindo o sossego de um bairro popular e de um prédio a caminho da remodelação às molduras bem iluminadas de uma galeria. A exposição durou pouco tempo, de 5 a 22 de Junho passado, mas tudo o que podia ver-se em Santos-o-Velho está impresso nesta edição dos autores.
Voltemos à história. Zap é a abreviatura de Zaporogue, um cossaco que lutou contra os nazis, organizando uma guerrilha nas florestas da Rússia. As suas vitórias foram lendárias, mas o governo da União Soviética não apreciava heroísmos fora das trincheiras bem definidas do que era o seu exército, pelo que teve um papel essencial na desaparição de Zaporogue. De certo modo, tal como aconteceu com os cossacos que historicamente combateram em modo de guerrilha durante a II Guerra, honrando uma tradição de muitos séculos de lutas contra opressões várias, dos poderosos donos das terras aos cobradores abusivos de impostos. O mesmo governo soviético que, na ficção de Larrue e Almeida, aniquilou Zaporogue, apostou depois na sua mitificação, explicada por Arthur Larrue à medida que ia apontando detalhes nas pranchas coladas à parede: «Zap é um cossaco e o que fizemos foi construir uma personagem que é chefe de uma guerrilha e que pode transmitir, em termos históricos, o que foi a guerrilha contra os nazis, mas também a história da guerra de Estaline contra as iniciativas da guerrilha. Estaline foi muito bom a construir lendas… Martirizados, mortos e, depois de mortos, erigidos como heróis. No caso de Zap, é um homem do KGB que vai construir essa lenda. É uma coisa cínica, o uso político das pessoas… não é muito diferente agora, na verdade. Estaline recuperou a lenda e fez com que os anarquistas parecessem parte do movimento soviético.» Desvendando as várias camadas psicológicas de Zaporogue presentes na narrativa, Xavier Almeida acrescenta: «Também nos interessava esta liberdade do Zap e dos cossacos, coisa que já vinha de trás, quase um proto-anarquismo.»
Quatro mãos, dois idiomas
As vinte e duas pranchas que compõem esta história alinham-se a preto e branco, num traço fluido, por vezes riscado, que é a marca de Xavier Almeida. O processo não foi simples, porque se os dois autores partilham a fluência no português, só um deles sabe francês: «Enviei um script para o Xavier, que não lê francês e não pôde ler o romance», disse-nos Arthur Larrue. «Depois, o Xavier desenhou o resumo e eu trabalhei a partir daí.» A estruturação das vinhetas fez-se, então, com este diálogo já em português.
Na sequência inicial, a lembrar certas bandas desenhadas pulp norte-americanas, quatro paraquedistas saltam de um avião soviético. Será um deles a desencadear a narrativa, convencendo o cossaco Zaporogue, resguardado nos bosques com os seus guerrilheiros, a acompanhá-los até junto do general Vatoutine, num movimento que viria a revelar-se uma emboscada. A história é simples e é no modo como as personagens se comportam que está a sua riqueza: o mau-feitio de Zaporogue, pontuado por um humor corrosivo, as más intenções do enviado do KGB e a leveza com que este dá um tiro num dos seus para encobrir a emboscada armada ao cossaco, o complexo xadrez político e social que envolve uma situação onde nazis e soviéticos se opunham sem que a tentação do maniqueísmo se instale na narração.
«Esquecemos a parte escrita e os desenhos são de algum modo o ponto de início deste livro», explicou Arthur Larrue. «E houve momentos que nem sequer existiam no livro, foi uma reescrita, porque é a mesma história, mas é outra linguagem.» É o caso da sequência de três pranchas em que Zaporogue cavalga junto aos enviados soviéticos, talvez acreditando que vai mesmo ao encontro do general, talvez suspeitando que pode enfrentar um destino fatal. Nessas pranchas, cheias de detalhes da paisagem e marcadas pela fisionomia severa e ao mesmo tempo honesta do enorme cossaco, permite-se à leitura uma respiração prolongada, quase contemplativa, antes de a acção voltar a ser a regra. É o momento em que Zaporogue confirma a sua aura de mito, mas a primitiva, aquela que o rodeou pelo facto de ser um cossaco e de manter a tradição de uma guerrilha pelos valores que lhe pareciam os justos. A outra aura, a que Estaline havia de impor a estes guerrilheiros depois de os tentar integrar nas regras, hierarquias e práticas do exército soviético, acabando por aniquilá-los para depois os transformar em heróis, essa não merece espaço nesta história.
O romance de Arthur Larrue será traduzido brevemente em português, confirmada que está a sua integração no catálogo da Quetzal. Em paralelo, Arthur Larrue e Xavier Almeida trabalham numa adaptação integral deste romance para banda desenhada, um projecto de grande fôlego que levará mais tempo a chegar ao papel. Até lá, temos Zap, a lembrar os tantos derrotados da história que certas memórias partilhadas vão conseguindo resgatar. Para isso, pode ser preciso mudar a posição do prisma com que lemos o passado e encontrar na dureza implacável de um cossaco a bravura terna que se escondia debaixo da história enviesada de um herói.