Destaque Andreia Brites 20 Janeiro 2022
Ilustração © Bárbara Quintino (Barah)

Revista Emília: dez anos de acervo e compromisso

2021 foi um ano de comemorações e mudanças na Revista Emília. Na sua génese, em 2011, esteve o site onde se começaram a divulgar gratuitamente diversos conteúdos sobre promoção da leitura e sobre o livro de potencial recepção infantil e juvenil. Cumprida a primeira década de vida, a Emília cresceu geograficamente, no número de colaboradores da equipa e na amplitude das suas ações. Apesar de a sua centralidade ter nascido na cidade brasileira de São Paulo, as parcerias e as vozes estendem-se a outras cidades e outros países do eixo ibero-americano.
Ilustração © Bárbara Quintino (Barah)

Identidade: uma política pela transformação

Em 2021 surgiu uma nova secção na revista intitulada Palavra aos Editores. É aqui que se tece o balanço dos últimos dez anos e se apresenta a estrutura para onde evoluiu a revista. Hoje é o Instituto Emília a organização que alberga todas as valências do projeto e que são quatro: a Revista Emília, principal produtora de conteúdos e ligação entre as várias redes, acções e o público; o Selo Emília, que começou por editar dos Cadernos Emília, iniciados em 2017, e aos quais foi juntando ensaios na área da leitura e da literatura, alguns dos quais em co-edição; o Educativo Emília que promove cursos, clubes de leitura, laboratórios de formação, seminários e exposições; e as Consultorias na área editorial, pedagógica, de formação em bibliotecas e cultural, onde também se estabelecem parcerias com outras instituições e agentes.

São áreas complementares com a mesma função, assumida pela equipa: formar leitores críticos, comprometidos com valores. “Desobedientes, críticos, capazes de discernir e se posicionar no mundo como agentes de intervenção e transformação social.” podemos ler no artigo “Emília chega à maioridade” de 2 de junho de 2021 (→ ler artigo)

Esta será provavelmente a pedra de toque que faz a identidade da revista e que orientou o crescimento deste projeto cada vez mais amplo: a participação para a mudança. É uma espécie de 2.0 que não reside no virtual mas nasce ali para se disseminar nas comunidades e indivíduos. A mudança é operada pela leitura em quem lê e continuada nas suas ações e na sua mediação junto de outros leitores para pensar e intervir.

Um exemplo que relaciona todas as vertentes do Instituto Emília é o livro Nascidos para ler no melhor lugar para se viver. Na categoria Formação de Leitores, Anita Prades e Valdirene Rocha assinam um longo artigo a 07 de julho de 2021 no qual descrevem tudo o que aconteceu entre a ideia para o livro e a sua existência física. “Semeando palavras, colhendo livros” começa por contextualizar a ideia. Parelheiros é uma comunidade periférica no sul de São Paulo onde há desde 2008 uma intervenção participada em torno da primeira infância, envolvendo o Instituto Brasileiro de Estudos e Apoio Comunitário (IBEAC), o Centro Popular de Cultura e Desenvolvimento (CPCD), mães, jovens mediadores de leitura, educadoras, profissionais de saúde e agentes comunitários.

Neste âmbito tem-se vindo a desenvolver um trabalho de continuidade entre uma biblioteca comunitária, a maternidade e a população que abriu espaço à ideia de criação de um livro colectivo, com textos e fotografias da comunidade sobre e para os bebés e crianças do território. É aqui que começa o trabalho do Instituto Emília, apoiado pelo Itaú Social. Desde a composição do projeto, cuja inspiração reside no programa italiano Natti per Leggere, ao delinear das oficinas de literatura, escrita, fotografia e edição, ao acompanhamento do processo de divulgação e convite à participação na comunidade e da criação e discussão coletiva dos materiais até à seleção dos textos e fotografias que integraram o volume, tudo passou por uma equipa multidisciplinar da Emília. Ainda, houve a preocupação de planificar uma exposição com todos os trabalhos que não foram selecionados para o livro, organizar o lançamento do volume e posteriormente colocá-lo à venda nas livrarias Martins Fontes, parceira do Instituto. Assim se materializa num projeto paradigmático a dinâmica permanente entre as várias áreas do Instituto, que têm na revista uma voz, no Educativo uma intervenção no terreno, nas Consultorias o apoio e o desenvolvimento de redes que permitem a sustentabilidade das acções e no Selo a garantia de qualidade editorial.

O artigo relata passo a passo os vários momentos do projeto e dá conta de testemunhos das participantes, enquanto justifica as estratégias escolhidas para a sua realização, os obstáculos e os sucessos. Há que acrescentar que o objetivo final da edição não comercial do livro é o de oferecer um exemplar a cada recém nascido da comunidade, acompanhando com novos encontros e oficinas a forma como a apropriação identitária deste objeto poderá cimentar a formação de leitores e a leitura nas pessoas daquele território.

Finalmente, o valor das vendas da edição comercial reverterá para a construção de uma nova Biblioteca Comunitária já que a anterior foi desmantelada como o leitor também fica a saber pelo artigo do mediador social e cultural da comunidade Bruno de Souza, no artigo “Eu (a)guardo a Biblioteca Comunitária Caminhos da Leitura, na secção Palavra dos Editores a 19 de agosto de 2021. O autor, que narra como se mantém viva a biblioteca durante este período em que não há um espaço disponível, é colaborador permanente da Emília.

Ilustração © Bárbara Quintino (Barah)

A revista é a cozinha desta casa

Dos temas abordados aos especialistas convidados a partilhar o seu pensamento, dos livros recenseados ao cruzamento entre tópicos, a revista Emília apresenta-se promovendo o diálogo entre os seus conteúdos, sugerindo leituras a partir de leituras, novos artigos, pesquisas dentro e fora do espaço da revista. As etiquetas e as sugestões de leitura no final de cada artigo relacionam conteúdos dos seus principais eixos: Palavra dos Editores, Polémicas e Reflexões, Literatura e crítica, Formação de Leitores, Entrevistas e o Mundo do livro. É também aqui que se vertem em palavras pensamentos e ações desenvolvidas noutras divisões desta casa (Educativo Emília, Consultorias e Selo Emília).

Assim, se ao leitor interessar por exemplo o tópico do leitor adolescente, pode começar por pesquisar por jovens. Traçamos um possível percurso sumário (entre outros).

São cinco páginas com entradas em que o primeiro texto data de 2018. Começamos por ler o artigo “Mais (e melhores) espaços para a leitura com os jovens”, onde a chilena Macarena Paggels Soliz alerta para a necessidade de trazer o leitor juvenil para o palco da mediação. Quer isto dizer que o circulo de leitura muito explorado pelo inglês Aidan Chambers poderá ser um lugar privilegiado para que o adulto oiça os indivíduos leitores que ali aportam, quer no que ao percurso de leitura diz respeito mas sobretudo sobre os seus interesses, dúvidas e anseios. Macarena chama a atenção para o perigo da idealização do leitor juvenil, tanto quanto do livro escrito segundo receitas, ou ainda das fórmulas paraliterárias.

Seguimos para outro título que nos chama a atenção: “A literatura juvenil: uma etiqueta forçada”, da espanhola Silvia García Esteban. Embora não conste desta lista de pesquisa, haviamos já acedido ao artigo de Antonio Ventura, em 2013, “Fronteiras da literatura juvenil atual” que traça um diagnóstico não muito optimista da evolução dos catálogos considerados juvenis de várias editoras em Espanha. Queriamos confirmar se a linha de pensamento ia na mesma direção e constatámos que a mediadora, passados cinco anos, também questiona a categora de literatura juvenil, defendendo a universalidade do receptor da verdadeira literatura que, justamente pela universalidade dos seus temas não exclui leitores.

Tal como acontece com o exemplo anterior também este artigo se encontra na secção Formação de leitores e, à imagem do anterior, foi produzido como projeto final do curso A literatura me mata – existe literatura juvenil?, organizado pelo Laboratório Emília de Formação.

Abandonemos os textos sobre Formação de leitores. “Imaginar é resistir”, na categoria de Literatura e crítica, soa a manifesto. Assim se verifica, pelas palavras da autora, a brasileira Anita Prades, que sintetiza um longo e sustentado pensamento teórico com raízes no terreno de que a narrativa literária e a arte são essenciais para a identidade individual e que deve existir na vida de todas as pessoas, nomeadamente as crianças e os jovens, como forma de enquadramento para as suas memórias, experiências e contextos. Ler narrativa e aceder ao poético da arte contribui para dar voz às narrativas subjetivas de cada um e, não só mas também por isso, deve ser defendida como um Direito Humano.

O design do novo site é intuitivo. Quem navega tem ao dispor vários caminhos a percorrer, a partir de categorias indicadas. É assim muito fácil aceder a todo o arquivo da revista, desde 2011, e avaliar, diacronicamente, os principais temas que têm vindo a merecer atenção detalhada dos colaboradores e convidados da publicação.

Ilustração © Bárbara Quintino (Barah)

Uma década em revista

É uma das novidades da Secção Destaques da Revista Emília. A 31 de maio de 2021 apresenta-se o Guia especial comemorativo dos 10 anos do Projeto Emília onde se reúnem os títulos infantis e juvenis mais relevantes que a equipa desta secção escolheu entre 2013 e 2018.

O guia pode ser consultado online e conta com mais de uma centena de livros listados, pequenas resenhas aos livros arrebatadores, links para artigos na revista e ainda o nome dos especialistas responsáveis pela seleção. A ilustração tem um lugar igualmente importante nesta edição, como acontece em toda a revista ao longo desta década que já se cumpriu: todos os artigos têm texto e imagem, sendo esta maioritariamente ilustração e, aqui e ali, fotografia.

Outra das novidades anunciadas reporta à alteração do processo de seleção dos destaques. O novo formato arrancou em 2021 e incluiu títulos de 2019 e 2020, daí o Guia só ter contemplado o período entre 2013 e 2018. Uma das razões para a reunião de três anos editoriais prende-se com a pandemia que também contribuiu para as alterações. Assim, num primeiro momento os livros são entregues a um conjunto de especialistas que os analisam fazendo uma pré-seleção. Depois o grupo de especialistas reúne e decide o conjunto de títulos merecedores de destaque. Num terceiro momento este acervo será lido e discutido em rodas de leitura por grupos de crianças e jovens com mediadores.

Na organização de conteúdos não houve mudanças. Foi o novo site que deu uma imagem mais organizada, intuitiva e coerente ao acervo que já existia e continua a ser trabalhado. A continuidade é muito evidente quando nos detemos sobre os temas e os reencontramos ao longo dos anos através de novos livros, novos projetos de mediação, novos contextos. Seja pela mão dos mesmos ou de outros autores.

A questão da categorização etária, as fronteiras entre álbum ilustrado e livro objeto, a análise ao álbum sem texto, a qualidade ou falta dela dos livros informativos são alguns dos tópicos explorados dentro do universo artístico e literário, bem como a voz narrativa, a poética da palavra e da imagem, os cânones e os clássicos. Há resenhas mais breves, críticas e análises comparativas, muitas delas na categoria Mundo do Livro. Na mesma linha, as entrevistas também dão espaço a ilustradores, escritores e editores. Katsumi Komagata, Roberto Innocenti, Kveta Pakovska, Isol, Catarina Sobral, Thierry Magnier, Shaun Tan são alguns dos mais internacionais.

Reflete-se sobre o mercado editorial, entre editoras, livrarias e feiras. A responsável pelas exposições na Feira Internacional do Livro Infantil de Bolonha, Elena Pasoli toma a palavra numa conversa recente, em maio de 2021, onde fala do digital, do formato online da Feira, de poesia, de prémios e, evidentemente, da pandemia. Também a rede LEQT (Leitura e escrita de qualidade para todos) assina um artigo em que algumas das entidades que a constituem argumentam contra a taxação de 12% sobre os livros no Brasil.

Finalmente, não há como passar ao lado dos considerados temas fraturantes que têm vindo a ganhar, ainda que muito lentamente, um espaço de afirmação. A identidade de género, a liberdade, a democracia, o discurso dos media e as fake news, as desigualdades sociais serão os mais notórios. Porém, o racismo endémico será porventura o mais tratado: questões étnico-raciais, cultura afro-brasileira, escola, livros. O alcance é transversal e vai da cor dos lápis com que se pode pintar a pele num desenho a metodologias a implementar em sala de aula para promover ali a igualdade étnico-racial. As personagens negras, a representação, a voz, o lugar são amplamente recuperadas e os textos não as isolam de outros tantos assuntos, modus operandi e paradigmas comportamentais e sociais que sempre se cruzam. Há títulos bastante sintomáticos: “Literatura para desarmar racismos geracionais”, “Peppa e o debate público: relações raciais nas páginas dos livros infantis” e “Quando a afro-bibliodiversidade lê Monteiro Lobato” todos de Heloisa Pires, “Sou negra” e “Morrer diante das cameras” de Sara Bertrand são apenas alguns exemplos.

Podemos taggar bibliodiversidade, preconceito, ecologia, democracia, migração, censura, pós-verdade, fome, periferia, voz… Haverá sempre uma ligação, e dessa outra. Porque, como diz Kiara Terra numa declaração de amor à arte de levar a palavra ao leitor de sons, “Palavra boa é bicho solto”.

Ilustração © Bárbara Quintino (Barah)

Sermos leitores é sermos políticos

Ao longo desta década, as vozes que se encontraram nas páginas da revista e se associaram a projetos e programas no Brasil são das mais capacitadas do mundo para pensar a leitura, os leitores e as políticas de intervenção. Ainda, Dolores Prades e a sua equipa têm o mérito de congregar nomes reconhecidos e admirados à escala mundial, referências imprescindíveis para todos os que se interessam pela leitura. María Teresa Andruetto, Yolanda Reyes, Silvia Castrillón, Michèle Petit, Sara Bertrand, Ana Garralón, Antonio Ventura, Cecilia Bajour, Ines Miret, Javier Sobrino, María Beatriz Medina, Marina Colassanti, todos podem ser lido ali.

O testemunho do tempo é precioso e está ao alcance de um clique. Sem ilusões, nem todos estão em condições de o fazer. Mas, a todos que o consigam e desejem, nenhum conteúdo será vedado: a gratuiticidade é um imperativo da revista. Faz parte da sua demanda ideológica.

As palavras de Carolina Fedatto, que encontramos no artigo “As vozes narrativas e as coisas reais”, de outubro de 2021 são disso um paradigma.

“Essa conversa toda sobre a descoberta do fato de que toda história é contada do ponto de vista de alguém – que pode ser um, dois ou muitos; controlador, generoso ou confuso; ingênuo, astuto ou disperso; indiferente, discreto ou desonesto – é um reconhecimento do papel fundamental dos leitores que não são estudiosos ou especialistas (aqueles que embarcam no pacto da ficção, que se permitem viver quinze minutos de outras vidas e pronto) na construção de uma sociedade crítica, plural e justa. Entender que toda história é uma versão é um passo decisivo para qualquer possibilidade de democracia e transformação social. E a literatura pode nos fazer viver isso na pele, mais do que a teoria!”
Ilustração © Bárbara Quintino (Barah)

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