Crítica Sara Figueiredo Costa 25 Janeiro 2024

«Que bela tarde para não se escrever»

Desculpem Tocar no Assunto
Rubem Braga
Tinta da China

Eleger o maior, o melhor, o mais popular é um exercício pouco útil. Rubem Braga foi certamente um dos grandes cronistas brasileiros e, num país onde a crónica foi elevada a obra de arte por tantos nomes, pouco importa decidir quem deverá ocupar o lugar do topo. Não é um ranking, não há topo e ganhamos muito em ler Rubem Braga a par com outros cronistas, por exemplo Manuel Bandeira ou Carlos Drummond de Andrade, escribas com Rubem Braga quem partilhou muito (até crónicas, como se conta no posfácio, a propósito de um quase plágio a algumas crónicas de Drummond).

Dando continuidade à coleção Os Melhores Deles Todos, dirigida por Abel Barros Baptista e Clara Rowland e dedicada à literatura brasileira, Desculpem Tocar no Assunto é uma antologia de crónicas de Rubem Braga. A escolha terá sido difícil, sobretudo no que toca à decisão sobre o que deixar de fora, uma vez que Braga foi um cronista prolífico e durante várias décadas. Essa é, aliás, uma das características que se destacam neste livro, a possibilidade de acompanhar a produção de um autor ao longo de tanto tempo – entre as décadas de 30 e 80 do século XX – e, tratando-se de um cronista da imprensa, notar as mudanças sociais, culturais e do quotidiano. 

A crónica fez o seu percurso no seio da imprensa, caminhando a par com esta e encontrando o seu lugar no mapa dos géneros jornalísticos, mas sempre foi um género pouco dado a fronteiras e difícil de definir no que a regras diz respeito. Neste volume, há algumas crónicas em que Rubem Braga reflecte sobre a própria crónica e a sua escrita, explorando o tema da escolha do assunto ou mesmo o tema da inexistência de assunto, como acontece na primeira, intitulada «Ao respeitável público»: «Todo cronista tem seu dia em que, não tendo nada a escrever, fala da falta de assunto. Chegou meu dia. Que bela tarde para não se escrever.» Seguro do seu registo, termina mesmo enxotando os leitores, depois de afirmar que poderia ter escolhido qualquer assunto, uma vez que esse é o seu trabalho, escrever, fazê-lo sobre tudo e qualquer coisa, e esse desprezo encenado por escrito é o gancho para revelar algumas particularidades do seu peculiar ofício. É extraordinária essa capacidade, revelada em todos os textos desta antologia, de escrever sobre qualquer coisa e nesse gesto inscrever no texto amores e desamores, modos de locomoção na cidade, desigualdades sociais, conversas de botequim, preferências e embirrações, paisagens, manias, o mundo, enfim. E sempre com aquela desenvoltura de quem consegue ser coloquial e parecer muito simples, o que releva necessariamente de uma complexidade que os grandes cronistas sabem disfarçar, tornando a leitura dos textos fácil e prazenteira. Mais do que essa ilusão, a boa crónica produz um milagre: lê-se de modo fácil, parece que alguém nos está a contar aquilo à mesa de um café, mas o que nos chega às meninges é sempre outra coisa, ou mais alguma coisa. No caso destas crónicas, isso é notório, quer o tema seja a escrita e a própria crónica, quer versem sobre qualquer outro assunto. Por isso mesmo Rubem Braga foi grandioso e não precisou de escrever em nenhum outro registo ou género para firmar o seu nome para a posteridade. No tempo em que os jornais eram sinónimo de papel impresso, a efemeridade de cada exemplar era a única certeza sobre o que se escrevia em cada redacção e os cronistas nunca escaparam a esse destino de o jornal com a actualidade de hoje ser o lixo de amanhã (às vezes, literalmente, usando-se as páginas para embalar o lixo no caixote doméstico). Fraca certeza quando lemos estas crónicas devidamente arrumadas em livro e prontas para continuarem a cutucar leitores, mesmo aqueles e aquelas que não tiveram o privilégio de ler as divagações do mestre no dia seguinte ao da escrita de cada crónica.

Na crónica que dá título ao livro, que começa com um comentário jocoso sobre a quantidade de gente que morre, num tom em que reconhecemos aquelas larachas quotidianas de empregados de café (queria, já não quer?), mas quando damos por nós já estamos submersos até ao pescoço numa reflexão sobre a morte. «O pior dos mortos é que nunca telefonam. Aparecem sem avisar, sentam-se numa poltrona e começam a falar. Tocam em assuntos que já deviam estar esquecidos, e fazem perguntas demais. Subitamente fazem silêncio. Esse silêncio é constrangedor.» (pg.158) O texto nunca abandona um humor contido, uma coloquialidade de mesa de bar, mas aquilo já não é uma conversa vazia sobre assunto nenhum. Nunca foi, fomos enganados, mas o texto, à semelhança de todas as crónicas aqui reunidas, permite que nos mantenhamos no tom da conversa de bar, olhando de frente para a seriedade do mundo ao mesmo tempo que a vemos esboroar-se, por vezes com riso a acompanhar, sem solenidade nem instituição.

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