Pode ser um homem feminista?
Estava no hospital, sentada na salinha à espera para uma consulta. Enquanto aguardava, lia a Teoria King Kong de Virginie Despentes. Um médico jovem, calçando uns tênis adidas surrados e com um coque a la samurai no topo da cabeça, transitava para trás e para frente. Passou por mim umas quantas vezes. De repente, sem parar de andar, ele disse bem alto: “Também estou a ler esse livro”. Ao que respondi no melhor português europeu, “Fixe!”
Enquanto ele se distanciava pelo corredor, de imediato a ruga mais acentuada que habita a minha testa franziu. Uma voz interior me indagou: os homens leem esse tipo de livros? A interrogação não demorou a transformar-se em desconfiança: por quê? Pra quê? Qual o objetivo? Com que intenção partilhou a informação em voz alta? E uma pontinha de apreensão se instalou.
Logicamente, não fui capaz de racionalizar tantas reflexões nos segundos fugazes da nossa interação. Porém, a estranheza permaneceu o resto do tempo em que aguardava para ouvir o meu nome resmungado no alto-falante pregado no teto da salinha de espera. Iam emergindo justificativas para tentar dissipar o tal incômodo que ativou os meus sensores de perigo iminente. Não pode um homem ler uma obra qualquer? Claro que sim. Asseverei para mim mesma. Aliás, se há alguém que pode ler qualquer coisa, são exatamente os homens (especialmente os heterossexuais e brancos).
Continuei inquieta. Teria o jovem clínico se equivocado por conta do título do livro? King Kong é o nome de um macacão gigantesco, monstro musculoso, protagonista de uma franquia que inclui revistas, brinquedos e filmes com três ou quatro remakes da produção original de 1933, além de títulos como “O Filho do King Kong” e “King Kong vs Godzilla”. Era possível que o doutor tivesse cometido um engano… Ou então… Estaria ele tentando se infiltrar para conhecer melhor o nosso mundo, descobrir mais, eventualmente sugerir ou implementar novas maneiras de nos oprimir? Quem saberia? Homens lendo tratados (quase um manifesto) sobre o feminismo? Isso não poderia resultar em algo positivo. Ah, não mesmo! Alguns instantes depois, descartei a hipótese: ninguém que se considere superior teria interesse no que é inferiorizado por ele próprio.
Seria um ardil? Uma astúcia para conhecer ou persuadir damas incautas? Na perspectiva do conquistador, quem não gostaria de despertar nos abraços dele? Ser seduzida por um homem moderno, com fios de cabelo escapando do coque, escorrendo pelo pescocinho que se insinuava com uma tatuagem? Um homem desconstruído nas questões do lugar da mulher na sociedade? Um homem sensível, um feminista? Ai de nós!! Será que ele estava se aproveitando daquele discurso para conquistar mulheres?
Admito que a frase bradada pelo médico no corredor foi um torvelinho que bagunçou a estabilidade do meu mundinho. Fui sempre feminista, mesmo não compreendendo o que isso significava. Desde cedo soube que ser menino era melhor que ser menina. Os meninos podiam fazer realizar ações interditas às meninas, começando pelo simples ato de fazer xixi em qualquer lugar (naquela época, para mim, essa era a maior vantagem da condição masculina). Nunca acreditei que os rapazes fossem mais inteligentes do que as meninas. Pensava o contrário: eu e a filha do diretor éramos as melhores alunas da turma, corroborando a teoria. Não me considerava bonita, tampouco feia. A beleza era indiferente, pois não me servia para nada. Nunca me quis casar e, apesar de me ter casado, em minha defesa, só o fiz aos 39 anos (e uma única vez). Embora jamais tivesse desejado ter filhos, se acaso os tivesse seriam adotados. Havia muitas crianças no mundo, dizia. Na verdade, sempre achei abominável a ideia de uma criança sair pela minha vagina. Mas vida me trocou as voltas e me concedeu a oportunidade de ter filhos (maravilhosos aliás), contudo por meio de cesarianas. Toma lá! E para concluir, não fazia absolutamente nada para agradar os rapazes.
Talvez por ter desenvolvido um radar em garota, considerei que a obra fosse reservada às mulheres. Descobrir um homem lendo o mesmo livro fez-me sentir invadida. Aquela era uma esfera de segurança cuja entrada deveria lhes ser vedada. No fundo, senti na frase do médico um certa cumplicidade: “ele sabia quem eu era”,”conhecia os meus segredos”. O sistema de crenças, valores e práticas que privilegia os homens em detrimento das mulheres parecia estar operando também ali, naquela salinha de espera, no livro feminista punk rock que desfrutava. Que traição era aquela?! Foi então que compreendi ser o velho medo, aquele incrustado em todas nós, que transformou a iniciativa do médico numa ameaça velada. Atravessar uma rua escura à noite, onde desejamos que o pior a nos acontecer é sermos roubadas.
Comecei a olhar para a caixa de som aparafusada no teto à procura do meu nome. Precisava me recentrar. Se o macaco era tão fortão por fora, mas, no fundo, era bonzinho, somos boazinhas por fora, mas por dentro… ai por dentro… Somos boazinhas também. Não deveríamos. Deveríamos usar aquela potência toda para mudar o sistema, ser uma punk com a força de uma King Kong!
Em essência, ser punk significa contrariar o estabelecido. Por isso, por que não usar os homens para corroer o sistema por dentro? Um conceito bem injusto, contraditório e bastante revolucionário que a obra nos traz é de que as mulheres carregam parte da responsabilidade. Afinal, nós educamos os homens. Claro que o fazemos com base no sistema em que estamos inseridas. Mas esse é um papo longo… Só por agora fiquemo-nos apenas pela possibilidade de podermos empoderar os homens para se tornarem aliados eficazes do feminismo. Então, por que aquele médico não poderia já ter sido também instruído por uma mãe, uma irmã, uma amiga ou até pela namorada? Uma King Kong girl em ação. Um sorrisinho de macaca velha brotou no cantinho da minha boca. Um homem não apenas pode como deve ser feminista. Logo em seguida, ouvi o meu nome no sistema de som.