Palavras de Caramelo
Gonzalo Moure
Maria Girón
Kalandraka
Tradução de Elisabete Ramos
Há muito que a Kalandraka vem editando, a par de álbuns ilustrados, narrativas mais longas, de dimensão variável, num formato que mantém a capa dura mas alberga um número de páginas que obriga a uma leitura desdobrada em vários momentos.
Para além das obras de Janosh e Arnold Lobel, é na coleção 7 Léguas que se encontram desde contos de outras geografias a tipologias derivadas do género narrativo, como microcontos ou animalários. São leituras para quem já se iniciou na aquisição da competência que servem uma faixa etária relativamente ampla, até aos onze ou doze anos.
Palavras de Caramelo é um desses livros, um conto narrado a partir de um contexto hostil, atual mas não novo. Quando se pensa em representatividade, este é sem dúvida um exemplo. Deficiência, migração, pobreza, território ocupado e campo de refugiados são tópicos que não deixam dúvidas. Porém, a riqueza da narrativa está na conjugação do tema principal com o seu contexto. Kori é um menino surdo que pouco comunica com os demais. Vive num campo de refugiados tão antigo que já tem contornos de cidade, no deserto argelino. Smara existe de facto, pelo que as descrições da aridez do deserto e das limitações de água, energia e alimentos ganham outra verosimilhança. Estas condições de vida a que os sarauitas estão sujeitos e que lhes condicionam a liberdade a mínimos de sobrevivência, são direccionadas para o menino surdo que imagina sentidos para os movimentos da boca de quem o rodeia, naquele campo de refugiados, onde ele é ainda mais periférico à comunidade. Porém, seria paternalista ler a história de amizade entre Kori e o pequeno camelo como uma consequência da sua surdez. Kori gosta de camelos e desenha-os. Não gosta de cabras porque mordem. Gosta de camelos porque estes mexem os lábios e isso permite-lhe criar um diálogo imaginário, como faz com as pessoas.
Amizade é amizade em todo o lado, são laços de afeto, proteção e cumplicidade. Kori sente e demonstra a sua amizade pelo camelo até ao limite da sua coragem e liberdade, desafiando a família, a comunidade, o deserto. Para alimentar o diálogo, aprende a ler e a escrever. É o que fica da tragédia: a poesia.
Toda a narrativa se apresenta imagética através dos olhos e do pensamento do menino. Através dele o leitor acede a um quotidiano de trabalho, a uma organização social, a um lugar estranho, seja num ângulo mais abrangente como num movimento zoom. Kori não representa a comunidade enquanto estereótipo e isso enriquece os níveis de leitura do texto. Os tons quentes da ilustração representam da mesma forma o menino com o camelo e a cidade sitiada. Não é o mais alegre dos contos mas é certamente belo na tristeza e na melancolia que carrega.