O perverso círculo do tempo
Ninguém me contou, do avião eu vi. Estavam espalhadas por toda parte. Em terra, tentaram fazer-me desver. Repetiram, insistiram, disseram que na Europa não existiam favelas. Não?! Exclamei em 1992. Eu vi lá dos ares! Pôxa vida! Ou será que só eu as via por conta da intimidade? Afinal vinha do Rio de Janeiro, onde as favelas se espraiam na paisagem.
Mais tarde, no jantar, ocasião em que cometeria a minha primeira gaffe intercontinental, ouvi teorizações sobre o que eram ou não favelas: de certeza, aquilo que vira eram barracas ou, se tanto, bairros da lata. Favelas é que não! Generosos, os comensais conseguiram estigmatizar indivíduos em dois continentes a partir de uma mesa só.
Claro, a dada altura, desisti de me contrapor. Não por concordar com os comentários estapafúrdios, mas preferi encher a boca com uma garfada do meu peixe favorito. Bacalhau? Salmonete, meus amados. A tal primeira mancada deveu-se ao inocente animalzinho. Acontece que, no Rio de Janeiro, salmonete chama-se trilha — são inúmeras as pessoas que juram ser o sabor do pitéu igualzinho ao do camarão — é um peixe popular e bem em conta. Porém, estando em Portugal, mais valia ter-me atirado a uma posta do fiel amigo. Em terras cabralinas, o salmonete era caríssimo, fiquei logo mal-vista pelas pessoas que me recebiam.
Os anos correram, outros incidentes resultantes das diferenças culturais sucederam de parte a parte, fomos aguentando o barco (talvez fosse melhor dizer a nau). Volvidos trinta anos, eu e Portugal mudamos. Sou quase bilingue e o país tornou-se mais aberto, cosmopolita e moderno. Durante os governos de Cavaco Silva, ápice do luso neoliberalismo, os problemas relacionados à habitação começaram a ser abordados. Os moradores eram retirados dos lugares onde viviam que, regra geral, estavam próximos dos respetivos locais de trabalho. Despontaram as obras de embelezamento urbano, afinal Portugal era um país de UE e não poderia ficar para trás. Os tais bairros da lata (aka favelas) pululavam. Mais de dez mil habitações precárias, que existiam entre Lisboa e Porto, desapareceram nas décadas de 90 e seguintes.
No entanto, as medidas e políticas de inclusão social de fundo, por exemplo, melhores salários, que deveriam acompanhar as deslocalizações, ficaram para as calendas. Como é sabido, as deslocalizações não se produzem por casualidade. Não se verá um prédio de habitação popular nas áreas nobres. Ou seja, as mudanças, ainda que proporcionando condições mais dignas de habitação para as famílias, reproduziram as características da sociedade em que se inseriam. E continuaram a segregar, então no plano diretor das cidades.
Quando comprei a minha casa na Graça (faz muito anos, hoje seria impossível), os mais finórios me diziam: vais morar para aí? Olha que isso é um bairro operário. Era verdade. O meu minúsculo apartamento era repartido em pequenas divisões ainda menores para abrigar avós, pais, filhos e netos que conviviam espremidos e oprimidos em residências exíguas para um mundaréu de gente e, note-se, sem casa de banho. Verdade. O meu apartamento apenas dispunha de uma pia de despejo para os dejetos humanos e os banhos eram tomados, saberá Deus com que periodicidade, no balneário público, ao lado do prédio da Junta de Freguesia (subprefeitura).
A crise da habitação nas grandes cidades portuguesas não nasceu com o aumento do turismo, com a gentrificação, com os nômades digitais ou com o recente aumento do custo de vida. Por certo, tais fatores, somados ao monstro Tifão da especulação imobiliária, que tudo alcança com os seus braços gigantes, terão agudizado sobremaneira o problema. Contudo, a questão de fundo permanece e por isso retorna.
Quando caminho pelas minhas redondezas, através das janelas abertas, vejo os beliches encavalitados nas minúsculas assoalhadas, como os antigos quartos da minha casa de operários. Observo a quantidade de roupas penduradas nos varais, são dezenas de pessoas vivendo numa mesma casa. Vejo ressurgirem as ditas barracas, em versão tenda de nylon, no centro da cidade e, em casas de madeira, nos subúrbios. Homens e mulheres, com trabalho fixo, não conseguindo pagar uma renda de casa, obrigados a estarem na rua, amontados em becos, pelas calçadas ou nos baldios com as suas famílias, à vista de quem quiser ver. Porque sim, é preciso querer ver.
Este tempo inclemente que retorna é o tempo onde os homens do passado não fizeram o suficiente. Se, por outro lado, a nossa vontade não acontece nem no passado, nem no futuro, a perversidade do círculo do tempo só continuará se hoje negarmos o estado presente da sociedade em que vivemos. Que estranho seria nos condenarmos a repetição de um passado miserável se somos nós o nosso próprio tempo.