Destaque Verónica González Laporte 9 Outubro 2023

A Revista da Universidade do México. Um espaço de reflexão e difusão cultural desde 1930.

Com os seus 93 anos de existência quase ininterrupta, a Revista da Universidade do México é hoje talvez a publicação viva mais antiga do México. Nos seus 900 números, colaboraram os escritores mais prestigiados, pertencentes a todas as correntes artísticas e ideológicas do século XX e, do que vai, do século XXI. Todos os meses, são impressos quatro mil exemplares em papel, enquanto a edição digital tem uma média mensal de 150 mil. No total, já foram publicados cerca de quinze mil artigos e quase cinco mil autores. Estes números fazem dela uma das mais lidas e reconhecidas do país.

Desde há oito anos, para além de contribuir com crónicas, contos e traduções, a minha função é indexar e resumir cada um dos textos publicados. Para colocar à disposição dos nossos leitores, estudantes e especialistas, ou simplesmente curiosos, o valioso património histórico da revista, através da sua página digital. Graças à nossa “regra do tempo”, propomos aos nossos leitores uma longa viagem pela história: do indigenismo à Guerra Fria, do existencialismo ao surrealismo, passando pelo vudu ou pelo fascismo.

Sou também responsável por uma secção na versão digital onde proponho uma seleção de textos do passado relacionados com o tema do mês.

Olhemos para trás. A Real e Pontifícia Universidade do México, fundada em 1551, foi uma das primeiras da América. Em 1910, com o estalar da Revolução, o humanista Justo Sierra conferiu à instituição o seu carácter nacional e obteve a sua autonomia. Sete anos mais tarde, foi criado o Boletim da Universidade, que daria origem à Revista da Universidade. O primeiro número foi publicado a 1 de novembro de 1930, como órgão informativo dos acontecimentos universitários. A sua capa ostentava o brasão da instituição com o lema “O espírito falará pela minha raça”. Os professores e os diretores das faculdades, bem como os estudantes, foram convidados a publicar os seus trabalhos: só eles seriam responsáveis pelo conteúdo dos seus textos. Desta forma, a revista pretendia ser livre e independente desde o início.

No seu primeiro período, durante os anos trinta do século XX, esteve sob a direção de Julio Jiménez Rueda e era apresentado como órgão da Universidade Nacional Autónoma do México. Estamos a falar do período pós-revolucionário: a Revolução foi um ponto de viragem na sociedade mexicana. No seu discurso para a Rádio Universidade Nacional, em 20 de novembro de 1937, o escritor Agustín Yáñez insistiu no facto de a Revolução e a Universidade estarem ligadas. “Foram os filhos da Universidade que fizeram ouvir a sua voz para dar sentido à Revolução e foram eles que, depois da luta, se dedicaram à reconstrução”. A Revolução é um processo em movimento, uma busca de novos princípios, e assim deve ser a Universidade. Deve contribuir para a construção de um país melhor e questionar constantemente se está a cumprir a sua missão de incluir todos os mexicanos, mesmo os mais desfavorecidos.

Em 1936, sob a direção de Miguel N. Lira, a revista passou a chamar-se Mensual de Cultura Popular. De acordo com a sua vocação social, foram impressos e distribuídos gratuitamente 20 mil exemplares. Nessa altura, a revista já estava bem consolidada e era lida tanto por estudantes universitários como por uma grande parte da comunidade intelectual mexicana da época.

Vou falar aqui apenas de algumas “pepitas” que encontrei na minha longa exploração. Por exemplo, em 1932, o arqueólogo Alfonso Caso publicou os seus trabalhos mais recentes e as suas fotografias do sítio de Monte Albán. Podem imaginar o que significou descobrir os vestígios de uma cidade pré-hispânica em Oaxaca?

Durante este período, as suas páginas incluíam textos traduzidos de publicações como a Revue Littéraire e o The Washington Post, poemas de Paul Valéry e André Gide. Os seus correspondentes preocupavam-se em oferecer aos leitores um panorama cultural de outros países. A França enviava versos e ideias humanitárias. Enquanto os americanos impactavam os estudantes com os seus ténis de sola de borracha, as bandas desenhadas e os automóveis Ford. Diante dessas investidas, a revista procurou dar ênfase aos autores nacionais: Silvio Zavala assumiu a tarefa de publicar ensaios históricos e Manuel Toussaint de falar sobre as cidades coloniais. O indigenismo tornou-se um tema central: da alfabetização à aculturação. Rafael Heliodoro Valle – uma das grandes presenças do suplemento cultural El Universal Ilustrado e diretor da revista entre 1948 e 1949 – realizou entrevistas excecionais, por exemplo, ao muralista José Clemente Orozco, ao compositor Julián Carrillo ou ao escritor André Breton. Foram integradas expressões artísticas como a fotografia, o desenho, a escultura e a música.

Até ao final dos anos 40, era um espaço claramente masculino. Alguma mulher surgia entre as suas páginas, numa fotografia, com os seus caracóis, a saia amarrada até aos joelhos e o olhar fixo nas pontas dos seus sapatos. A chilena Gabriela Mistral abriu caminho para as suas congéneres com poemas dedicados ao México (“Recado sobre los Tlalocs”).

Nesta década, encontramos também a marca de Federico García Lorca (um poema inédito, publicado poucos meses após o seu fuzilamento, “Paisaje con dos tumbas”).

A revista deixou de ser publicada durante a Segunda Guerra Mundial e voltou a ser impressa em outubro de 1946, com um carácter um pouco mais jornalístico e o título redundante de Universidade do México. Órgão da Universidade Nacional Autónoma do México. Nessa altura, os seus números eram monográficos. Nesse mesmo ano, nasce a Gaceta UNAM, órgão oficial da Casa de Estudios. Graças a isso, a nossa publicação pôde dedicar-se inteiramente à cultura mexicana e internacional.

Um período importante começa em 1953, quando Jaime García Terrés se torna diretor e Miguel Prieto (um tipógrafo e impressor muito reconhecido) e Henrique González Casanova se encarregam da coordenação. O aspeto artístico era visível tanto no interior como no exterior: imponentes cabeças olmecas e pinturas de Magritte sucediam-se na capa. Os desenhos eram de Alberto Gironella e entre os colaboradores estavam Octavio Paz, Alberto Dallal, Álvaro Mutis, Max Aub e José Emilio Pacheco. Foi uma época de grandes mudanças: um ano antes, em 1952, foi oficialmente inaugurada a Cidade Universitária, um projeto desenvolvido num imenso terreno de Pedregal de San Ángel, de 176 hectares, por uma equipa de 70 arquitetos liderada por Enrique del Moral e Mario Pani.

Nos turbulentos anos sessenta, as capas rivalizavam em inteligência e mérito gráfico; algumas eram ilustradas por Leonora Carrington e Pedro Coronel. O espaço dedicado à literatura torna-se predominante. Escritores como Inés Arredondo e Rosario Castellanos colaboram ativamente.  Elena Poniatowska entrevista Luis Buñuel. Em março de 1960, um jovem colombiano publicou o seu conto “La siesta del martes”. Trata-se de um comboio que atravessa plantações de bananas, onde uma rapariga e a sua mãe viajam, sob um calor abrasador, numa carruagem de terceira classe. Iam a caminho de uma cidade que, anos mais tarde, viria a figurar no mapa do realismo mágico. Alguém adivinhou o seu nome? No mesmo número, Octavio Paz, o nosso Prémio Nobel, inaugurava a sua secção “Corriente alterna” (Corrente alternada), a partir da qual forjaria a sua obra com o mesmo título, enquanto Carlos Monsiváis dissertava sobre Alfonso Reyes. Sob a direção artística de Vicente Rojo, um talentoso herdeiro do saber de Miguel Prieto, o desenho da revista inicia um período de constante mudança. Integrou novas combinações de tintas, intercalando fotografias com pintura abstrata e clássica. Em setembro de 1966, uma nova tipografia foi atribuída ao título: o “U” maiúsculo da Revista da Universidade do México tornou-se um emblema que seria recuperado em vários momentos desde então.

Num número desta década, em julho de 1954, Juan Rulfo publicou um fragmento do seu romance, Los murmullos, que mais tarde intitularia Pedro Páramo. Um mês depois, em agosto, o protagonista de um conto do jovem Carlos Fuentes, comprou uma estatueta de Chac-Mool (uma pedra da cultura tolteca e asteca que continha oferendas aos deuses) em La Lagunilla, a nossa feira da ladra local. A sua barriga estava coberta com molho de tomate para simular o sangue do sacrifício. Uma manhã, o Chac-Mool acorda, veste o roupão de banho do seu comprador e expulsa-o de casa e da sua própria vida. Durante estes anos, foram publicados números especiais dedicados ao cinema pelo próprio Fuentes, Emilio García Riera e José de la Colina. Com a mordacidade que o caracteriza, Carlos Monsiváis retoma nas suas crónicas a valsa “Dios nunca muere” de Macedónio Alcalá. Os temas monográficos eram tão diversos como Lenine, a cultura japonesa ou William Faulkner. No que respeita à ilustração, os anos cinquenta e sessenta foram marcados pela influência da arte americana, com obras de Jackson Pollock, Mark Rothko e Andy Warhol.

O “U” maiúsculo da revista era uma corda sobre a qual saltavam Pablo Neruda, Mario Vargas Llosa ou Salvador Novo. Paul Leduc falava do cinema brasileiro e Luis Cardoza y Aragón descrevia uma suculenta tangerina pintada por Luis García Guerrero… Nas últimas páginas da revista, havia um espaço para a publicidade, a fim de a manter e oferecer ao modesto preço de cinco pesos o exemplar.

Nos anos setenta, foi sucessivamente dirigida por três escritores de renome: Hugo Gutiérrez Vega, Arturo Azuela e Julieta Campos, que foi a primeira mulher a dirigir a publicação. No seu editorial de apresentação, Campos indicou que o seu objetivo era transformar a revista num “reduto de lucidez apaixonada no oceano confuso de queixas e rótulos que, nos nossos dias, dá origem a tantos naufrágios”. Posteriormente, sob a direção de Federico Reyes Heroles, Horacio Labastida, Fernando Curiel e Alberto Dallal, foram privilegiadas outras disciplinas. Com Dallal, as questões científicas ganharam especial relevância. No início da década de 2000, Ricardo Pérez Monfort deu ênfase às humanidades e incluiu um suplemento mensal sobre livros.

Quando José Saramago esteve na Cidade do México para assistir à marcha zapatista que chegou ao Zócalo a 11 de março de 2001, os colaboradores José Gordon e Guadalupe Alonso entrevistaram-no. Depois da apresentação do seu romance La caverna, Saramago disse: “Se alguma vez escrevesse uma autobiografia, destacaria duas datas: 1998, quando recebi o Prémio Nobel da Literatura, e 2001, por este encontro no Zócalo, na Cidade do México”. Pareceu-lhe que: “as ideias que compõem o que chamamos zapatismo não são apenas válidas no México e na América, são importantes para a humanidade, são o instrumento de uma grande promessa, de voltar a entender o mundo em que vivemos, reflexionar sobre ele”.

O escritor de romances históricos, Ignacio Solares, assumiu a direção da publicação, que durante mais de uma década se dedicou essencialmente à literatura mexicana.

Desde 2017, é dirigida por Guadalupe Nettel, vencedora do Prémio de Romance Herralde. Embora o ADN, por assim dizer, deste período continue a ser a literatura, a intenção é abrir a conversa o suficiente para que especialistas de outras disciplinas possam participar. A sua tradição inicial de revista interdisciplinar e monotemática foi retomada. O número atual, o 900, o número de setembro, por exemplo, é “extraterrestre”, dedicado ao que está para além do nosso planeta. Os números giram em torno de um tema relevante para a nossa sociedade, a partir de pontos de vista tão diversos como as humanidades, as ciências, a arte e a criação literária.

A aposta atual da RUM, como lhe chamamos familiarmente entre os colaboradores, é agitar e incomodar. É falar de temas que poucos ou ninguém se atreve a abordar, descrevendo o belo e o horrendo das nossas sociedades. Há uma procura permanente de integrar escritores e editores de diferentes gerações e países (Argentina, Brasil, Cuba, Espanha, Panamá, Chile, França, Quebeque, etc.).

Entre os muitos temas abordados ao longo dos últimos seis anos encontram-se o extrativismo, a identidade, as revoluções, o êxodo, os cultos, as drogas, o racismo, a deficiência, o populismo, a magia… Podem consultar alguns dos nossos exemplares favoritos que trouxe do México para vocês.

Espera-se que a nossa publicação construa pontes entre diferentes latitudes, que seja um espaço de diálogo entre académicos de todas as disciplinas, um lugar que convide ao pensamento crítico, à tolerância, mas também à ação e à mudança.

Nettel escreveu: “as revistas literárias são um organismo vivo (…) têm vida própria, crescem, são influenciadas pelo exterior e exercem a sua própria influência sobre os seus leitores; sofrem transformações (…). Cada uma pertence a uma linhagem, a uma genealogia. Colaborar nelas requer uma abertura e uma disponibilidade para o encontro, como alguém que vai a um jantar sem saber exatamente quem serão os outros convidados”.         

A Revista da Universidade do México é também um programa de rádio, um programa de televisão na TVUnam e um blogue onde os jovens participam. Com a intenção de que as questões levantadas, como as alterações climáticas, tenham mais ressonância e suscitem reações proactivas.

Muito obrigado pela vossa atenção.

Texto lido durante a apresentação da Revista RUM no auditório da FJS, no dia 26 de setembro, numa sessão do ciclo Encontros Ibero-Americanos, realizado pela FJS em conjunto com a OEI e com a curadoria de Lauren Mendinueta.