Espelho Meu Andreia Brites 30 Outubro 2023

Piolha 
Rémi Courgeon
Orfeu Negro
Tradução de Joana Cabral

Depois de ler Endireita-te, que expectativas tem o leitor acerca de um novo álbum de Rémi Courgeon? Depois de um objeto de qualidade inquestionável, poderoso no discurso feminista sem uma sombra de panfletarismo, espantoso no relato de uma comunidade cultural e social diversa e ainda cuidadosamente pensado graficamente, é difícil não desiludir.

Esse é também o poder das narrativas bem contadas. Piolha é uma história totalmente distinta da anterior e, para muitas e muitos, com episódios que podem ecoar experiências próprias ou familiares. Porém, em nada se apresenta inferior. Apenas adequada ao contexto que descreve e relata. Piolha é o nome aparentemente carinhoso pelo qual Pavlina deve responder ao pai e aos seus três irmãos rapazes. A vida não lhe corre de feição por ser a mais nova e ter de garantir demasiadas tarefas domésticas. Não por exigência masculina direta, sobretudo porque nenhum dos irmãos quer ajudar e ela perde todos os desafios físicos que a libertariam das tarefas. Pavlina decide então aprender a lutar boxe para se defender. É um sacrifício pela emancipação, uma necessidade de dispor das mesmas ferramentas que os irmãos para poder negociar as tarefas domésticas sem perder sempre.

O que a narrativa tem de especial é o facto de não haver lugar a nenhum juízo de valor. Os afetos são apresentados através de ações e cada leitor recorrerá ao seu património emocional, biográfico, social e cultural para preencher os vazios com associações várias. Há na história um dado importante: Pavlina toca piano e as tarefas que a sobrecarregam tiram-lhe tempo para tocar. As ilustrações, que acrescentam informações preciosas ao texto, mostram uma alteração na indumentária da protagonista, que também se associa ao feminino. No final, não é por acaso que Pavlina tem ao colo um menino, quando ambos estão sentados ao piano.

A expressividade do seu rosto em diferentes momentos e alguma disformidade física na descrição caricatural que faz dos irmãos não dramatizam a situação. O leitor deseja o que efetivamente acontece: que Pavlina consiga superar-se e impor a sua vontade aos irmãos. Trata-se de uma solidariedade com os mais fracos, os desprotegidos, os explorados, a que acresce a discriminação de género.

Outro dado importante na história desta rapariga com contornos de heroína, é o facto de se tratar de uma família emigrante, o que é logo referido no início, quando o narrador apresenta o pai. 

O álbum tem várias camadas de leitura, centrando-se numa história individual, tal como acontece em Endireita-te. E, à imagem deste álbum, também se posiciona em defesa dos direitos das mulheres. Ambos os finais são felizes e poéticos. Resultam de uma retórica alternativa à da enunciação explícita de uma moral, trazem esperança e, necessariamente, um efeito de empoderamento junto dos leitores. 

→ orfeunegro.org