Espelho Meu Andreia Brites 10 Dezembro 2021

O meu cavalo indomável
David Machado
Ricardo Ladeira
Editorial Caminho

A poesia de receção infantil incorre por vezes num certo simplismo rimático e temático, como se o simbólico ainda fosse território interdito. Porém, quando o texto arrisca cruzar o imaginário fantasioso com as experiências do quotidiano sem temer incompreensões várias o resultado é simplesmente literário.

David Machado é reconhecido pela narrativa, quer infantojuvenil, quer para adultos. A sua incursão no género lírico não tinha ainda assumido o fôlego que se identifica neste volume. São 91 poemas de dimensões variáveis que têm em comum uma perspectiva surpreendente da realidade. 

Os elementos que integram o dia a dia, como uma cadeira, os nós dos atacadores ou os trabalhos de casa, são apresentados numa perspectiva subjectiva, relacionada com as expectativas do sujeito ou com a sua interação individual. Assim se compõe um episódio, muitas vezes ironicamente cómico. 

O processo funciona para momentos, figuras, objetos. Do medo do escuro à sopa, da professora ao monstro, do berlinde ao brontossauro, há incursões à amizade, ao pensamento, à vida e à morte, ao risco, ao brincar, à liberdade, sempre com um desafio de reflexão.

A coleção de referências associadas ao infantil é prolífera e acurada. Joga-se com emoções e ideias, do risível às grandes questões. O que se mantém como fio condutor é justamente a retórica do absurdo e da comicidade, sempre revelados através de lógicas subvertidas ou desviadas. A surpresa de uma associação ou o aparecimento súbito de uma informação mudam o curso do acontecimento e obrigam o leitor a refrear um conjunto de deduções suportadas pela sua própria relação com o mundo. 

Afinal os poemas vivem sempre em terrenos férteis para que os leitores se sintam seguros a reconhecê-los e a imaginar sobre eles. O espanto que eventualmente poderão sentir, o desacerto e o sorriso partem assim de um momento inicial de identificação. Tudo isto se passa no subtexto de composições leves, com ritmos genericamente acelerados, com imagens exageradas e sem o mínimo de moralismos ou condescendência. 

Para quem duvidasse, é a prova provada de que a literatura acontece se for bem escrita, independentemente do público a que se destina. Neste caso, cai bem a qualquer leitor.

→ caminho.leya.com