Miqui Otero: os livros como mapa e desígnio
Entrevista com Miqui Otero, escritor catalão que tem vindo a marcar o panorama da nova literatura espanhola, a propósito de Simón (Dom Quixote), o seu mais recente livro e o primeiro a ser publicado em Portugal, e também de Rayos, o romance anterior, ainda sem tradução portuguesa.
Miqui Otero é uma das vozes sonantes da narrativa espanhola contemporânea. Estreou-se em 2010, com o livro Hilo Musical, vencendo o Prémio Novos Talentos Fnac. A sua estreia em Portugal faz-se com Simón, também ele premiado (Prémio Ojo Crítico 2020), um romance de formação que acompanha o crescimento da personagem que dá título ao livro através do cruzamento de muitos fios narrativos, confirmando que o que se passa na cabeça de alguém é sempre difícil de arrumar.
Já no seu romance anterior, Rayos (edição espanhola da Blackie Books, ainda por traduzir em português), o autor havia explorado as tormentas da chegada à idade adulta, ali acompanhadas pelas profundas mudanças numa cidade, Barcelona, a braços com a especulação imobiliária. São dois romances muito distintos, um atravessado pelos livros e pelo seu papel na construção de uma identidade, o outro marcado pela amizade juvenil e o seu estatuto de âncora nem sempre devidamente valorizado, ambos revelando a violência do lucro sobre a vida das pessoas. Foi sobre estes dois livros que conversámos com Miqui Otero aquando da sua passagem por Lisboa, para apresentar Simón ao público que o acompanhou na última edição da Feira do Livro.
Neste novo romance, Simón, como já acontecia em Rayos, os protagonistas sofrem de uma espécie de síndrome de Peter Pan. Esta ideia de infância e os seus ecos na vida adulta é fundamental no seu trabalho literário?
Talvez esse tema esteja mais presente em Rayos e Simón seja um romance um pouco mais aberto, que tenta convocar outro tipo de temas e de problemáticas que vão além do que é mais íntimo. Rayos era um romance de formação, em essência, e Simón joga outros jogos para além desse. Dito isto, sim, interessa-me a infância como etapa em que sentimos coisas que não sabemos nomear, temos uma série de ângulos mortos e deformações de percepção que temos de completar com outra coisa, normalmente com a imaginação. O tipo de coisas que uma criança completa com a sua imaginação será sempre fascinantes. Há um ensaísta espanhol, Santiago Alba Rico, que tem um ensaio muito interessante chamado Leer con niños, onde explica que tendemos a pensar que uma criança é um projecto de adulto, quando na realidade o adulto é o que sobra da criança. Portanto, não faz sentido tratar uma criança como uma espécie de larva, ou algo que tem de ser construído, mas saber entender que nessa personalidade infantil há muitas coisas às quais não deveríamos renunciar, e que nos explicam quem somos, quem vamos sendo com o passar do tempo. Estes romances de formação, que tentam analisar essa passagem para a idade adulta, sempre me interessaram, porque é o momento em que o teu carácter ainda não está forjado. Os clássicos dizem que carácter é destino. Portanto, é um momento em que tens de negociar, precisamente porque o carácter ainda não está formado, o destino também não, e tens de negociar entre o que queres ser, o que se espera de ti, aquilo para que estás preparada, mas também a genética, o contexto sócio-económico, de classe, etc. Parece-me uma etapa muito interessante e por isso Simón começa o romance com com oito anos e acaba com trinta e muitos, e a infância tem um peso importante na narrativa.
A relação de Simón com os livros, muito definida pela relação com o seu primo, Rico, que desaparece misteriosamente, acaba por definir a sua relação com o mundo e com os outros. Sem querer forçar paralelismos entre dados e literatura, li numa nota biográfica que «Miqui Otero cresceu a ler livros em segunda mão no mercado dominical de Sant Antoni» e não posso deixar de ver esta referência biográfica reflectida no romance Simón.
Sim, é algo que nos une a todos, creio, os que lemos romances e os que escrevemos – que às vezes são a mesma pessoa. Cresci ao lado do Mercado de Sant Antoni, que é um enorme mercado de livros em segunda mão que acontece todos os domingos. Tive a sorte de nascer ali, a dez metros, e então, todos os domingos, desde muito pequeno, passava por lá. Tenho a certeza que influenciou a minha forma de ler, e de ver o mundo, na realidade, porque num espaço como aquele aproximamo-nos dos livros de uma outra forma, menos ritualizada.
Menos ritualizada do que numa livraria, é isso?
Sim, numa livraria – que é sempre um dos meus lugares favoritos do mundo – tudo está ordenado e compartimentado, está definido o que é um clássico, um romance, um livro de humor. Neste tipo de lugares, não, as coisas estão misturadas e isso permite-nos desenvolver uma espécie de gosto omnívoro e sem preconceitos. Lembro-me que quando era muito novo, ainda não adolescente, li um livro de Charles Dickens e lembro-me de pensar “isto é óptimo, toda a gente devia lê-lo!”, porque não tinha a mínima consciência de que tinha lido um clássico. Os clássicos, por exemplo, podem gerar em algumas pessoas um certo afastamento, mas num lugar como o mercado isso não acontece, permite-nos aproximar da leitura de um modo mais saudável, mais livre. Então, essa fase e esse lugar foram fundamentais para a minha vida de leitor e para o resto. E fui percebendo que em algum dos meus livros teria de fazer uma homenagem a isto, a este modo de aproximação da leitura, não necessariamente ao Mercado de Sant Antoni, até porque não quis fazer um romance localista.
Este livro começa com a inauguração dos Jogos Olímpicos de 1992 e termina com a abertura de uma pequena livraria de bairro, imediatamente antes do atentado nas Ramblas, em 2017. São duas inaugurações com escalas muito diferentes. Era sua intenção explorar a vida das personagens entre estas escalas, os acontecimentos históricos que as envolvem e uma vida quotidiana que só é memorável para aqueles que a vivem?
Certamente. Para mim, a literatura tem de dedicar-se a essas duas coisas, a História e as histórias.
É um programa literário?
Creio que sim, é essa a estética do romance para mim, é essa a sua intenção, explicar a História com maiúscula através dos olhos, do coração e da escala do ser humano e não dos grandes heróis ou das grandes vitórias, mas tendo atenção a esses episódios maiores, que chegam às nossas vidas de algum modo. Sempre me irritou aquele discurso que ouvimos durante algum tempo, a ideia do fim da História, a ideia de que a grande História já acabara e não voltaria a influenciar a vida das pessoas. Bom, aos que diziam isso teria sido bom colocá-los neste nosso presente pandémico, para que vissem até que ponto qualquer tipo de crise económica global como esta, que era sanitária, mas agora já é bélica e daí virão outras consequências, influencia a vida de toda a gente. Essa é uma espécie de postura apolítica que é, na verdade, mentirosa, errada. Este romance queria tentar agarrar essas duas coisas. E acaba com a inauguração da livraria, mas também com o atentado das Ramblas, e a mim interessava-me situar este início, com os Jogos Olímpicos, e este final, com o atentado, porque eram quase antónimos. Foram dois momentos da História vividos de modos muito diferentes, opostos, mesmo.
E Simón, o protagonista, percorre o tempo entre esses dois momentos.
Sim, o protagonista tem oito anos no início, quando abrem os Jogos Olímpicos, porque havia uma euforia em Espanha e em Barcelona, uma espécie de fé cega e acrítica no futuro, uma bebedeira colectiva. Tudo parecia uma festa de finalistas… E eu vivi aquilo com onze anos e parecia-me que os adultos tinham, na realidade, a minha idade mental [risos]. Confiava-se no progresso de uma forma bonita, por um lado, e perigosa, por outro. Espanha parecia querer afastar de vez a vergonha de ter deixado morrer um ditador fascista na cama, sossegado, tinha fundos europeus, era o grande momento de viragem, e toda a gente partilhava esta euforia. Quando chegamos ao atentado, em 2017, é o exacto oposto. Não há um sentido de pertença, até porque a sociedade catalã está profundamente dividida com o processo independentista, a nota dominante é o cinismo, a distância. E fez-me sentido que esse momento calhasse nos trinta e tal anos do protagonista, Simón, porque me interessava traçar este percurso que referiste há pouco, as peripécias de um protagonista que vai atravessando estes momentos históricos. É por isso que o romance começa e acaba nesses pontos e que o protagonista tem a idade que tem.
Este é um romance formativo, e uma das coisas que muda ao longo da viagem de Simón é a sua passagem da ilusão para a desilusão relativamente a Rico (o seu primo), aos livros, talvez à vida. É um tema literário com muita tradição, mas porque o escolheu?
Desde logo, porque é um tema paralelo à deriva do país e do mundo. Quanto maior é a ingenuidade, maior é a desilusão, por isso interessava-me que o protagonista fosse uma criança profundamente idealista, uma espécie de Quixote em miniatura, e que o seu primo, Rico, fosse essa figura lendária e fotogénica, para que a desilusão fosse maior e o contraste fosse maior. E a isso juta-se aquilo de que falávamos há pouco, o facto de Simón ser um leitor voraz e tão precoce, porque viver todas essas coisas nos livros o que faz, na realidade, é preparar-te mal para a vida, porque te prepara de uma forma excessiva… Algures no romance há a imagem de um tipo que vai andando com um garfo na mão num mundo onde só se serve sopa, então, é essa a ideia. A vida é muito menos ordenada, fotogénica e épica do que a literatura, claro. Até o acaso, que num romance é algo muito útil, que permite estruturar a narrativa, é algo que nos pode destruir a vida. Então, esta espécie de Quixote tem de lidar com estas armas que não lhe servem de muito na vida real, e a sensação de incómodo, de desilusão, é muito grande. No caso de Simón, é assim que tudo isto se desenvolve, mas creio que é algo mais ou menos habitual, que tendemos a pensar que cada vez sabemos mais, mas o que acontece é que cada vez nos desiludimos mais e somos menos curiosos.
Essa não é uma ideia demasiado pessimista sobre os livros?
Talvez, mas há outras vertentes, claro. Se tento desmistificar os livros é para que ninguém se aproprie da importância que têm para mim, quase como um irmão mais velho, um amigo muito querido. São uma escola fundamental e são o que nos permite viver uma série de vidas no tempo limitado que temos para viver. E de algum modo, sim, preparam-nos para a vida. Quase como os vírus infantis, nas creches [risos], que nos dão imunidade, nos fazem crescer com defesas. Esses vírus não são letais, o que fazem é preparar-nos o organismo para quando venham doenças piores. E na leitura isso também acontece, porque somos inoculados com pequenas doses de romantismo, mas também de decepção, aproxima-nos da ideia de amizade, mas também da ideia da morte. Tudo isso é fundamental e Simón passa por esse processo, depois afasta-se dos livros, mas acaba por regressar, e os livros permitem-lhe viver tudo isso e, sobretudo, permitem-lhe perceber que terá de regressar ao lugar de onde saiu.
Este novo romance, Simón, está cheio de referências a livros, filmes e música. E isso também acontecia em Rayos, mas talvez em Simón seja mais frequente. Poderá a literatura ser também uma espécie de mapa que nos ajuda a navegar sem nos perdermos através de tudo o que temos na cabeça?
É bonita, essa imagem. Sim, pode ser uma espécie de diário de bordo, de passaporte com as marcas dos sítios por onde passamos, e também de mapa sentimental, de memória. Claro, também é um plano de algo que se construirá. A literatura, ou qualquer tipo de olhar para o passado serve também para interpretar o presente e tentar imaginar futuros mais toleráveis, ou alternativos. E aí a ideia de mapa faz sentido, juntando-lhe a ideia de diário e de plano. Simón está cheio de livros que me ajudaram a entender muitas coisas, a mim, mas também ao protagonista.
Simon desilude-se, abandona o bairro para trabalhar na alta cozinha e acaba por regressar, um pouco derrotado, ao lugar original. É uma viagem frustrada ou o processo da viagem é sempre mais importante do que o destino final?
É a viagem que conta e em Simón vai-se formando e modificando aquilo que ele considera o êxito, o sucesso. Há um momento em que está deslumbrado pela glória, pela alta burguesia, pelo dinheiro, e nesse momento isso é o êxito para ele, por isso tem de aprender a criar a sua própria definição para essa palavra. Ora, o êxito não é êxito se nos obriga a trair uma série de coisas em que nos formámos. Portanto, as desilusões de Simón não são apenas sentimentais e familiares, têm que ver com o próprio sistema também, porque o capitalismo manifesta-se de um modo muito gráfico e eloquente, nomeadamente nesse restaurante para onde ele vai trabalhar, onde há direitos mínimos, uma vigilância total de todos os passos dos trabalhadores, uma espécie de distopia. E por isso o coloco a trabalhar nesse restaurante, porque era uma forma de fazer a personagem perceber como funciona tudo isso, todo esse sistema. E Simón persiste durante algum tempo, mas depois acaba por dar-se conta do que se passa, e percebe o contraste entre o lugar onde aprendeu a cozinhar, o bar familiar onde se fazem receitas simples e populares, e o lugar onde na verdade nunca aprende uma receita do princípio ao fim, porque aquilo é uma linha de montagem e cada um só faz uma pequena parte. Ali, os alimentos são um sinal de privilégio e a cozinha não tem nada de transmissão de memória familiar, como acontecia no bar da sua família.
Quando Simón cortava as batatas para a tortilha.
Sim. Acho que foi aí que percebi que a cozinha tinha de entrar no romance, porque eu queria escrever algo que me aproximasse daqueles romances do século XIX de que gosto tanto, onde há um percurso em direcção a uma espécie de glória, mas sabia que no século XXI não podia escolher o universo da capa e espada, por exemplo, ou o herói não podia ser um poeta, como acontece em alguns livros de Balzac ou de Stendhal, e a cozinha pareceu-me o universo certo. Na verdade, estava na cozinha quando tive essa ideia e quando olhei para a faca que tinha na mão percebi que aquilo era como uma espada, e foi aí que decidi que Simón seria cozinheiro. Os cozinheiros da alta cozinha são, hoje, uma espécie de estrelas de rock, de ases do espadachim modernos.
Falemos de Barcelona neste romance. A cidade é muito mais do que apenas um cenário, podemos assumir que é quase uma personagem?
Sim, de um certo modo. Mesmo que não tivesse pensado nisso, todas as leituras que se fizeram deste romance sublinham essa ideia, pelo que não posso fugir. E é certo que o romance joga muito com momentos importantes da cidade. E no caso de Barcelona também entra aqui em linha de conta o facto de haver uma espécie de tradição muito forte de romancistas que escreveram sobre a cidade e que fizeram com que falássemos de um “romance de Barcelona”, quase como um subgénero… Não escrevi com esse objectivo, só que Barcelona é o lugar onde cresci, uma cidade que se vê maior do que é na realidade, que tem muita matéria literária, onde o dinheiro se esconde – as classes altas não mostram o dinheiro que têm – e tudo isso é interessante.
Como acontece em Rayos, quando Fidel e Justo, visitando um bairro de gente rica, sugerem que haverá um espaço subterrâneo e fora da vista por onde circulam empregados e fornecedores daquelas casas, já que não se vê vivalma nas ruas?
Sim, há lugares desses onde não se vê uma única loja, uma mercearia, um supermercado! Em Barcelona isso é muito notório, ao contrário de outras regiões de Espanha, onde as pessoas com muito dinheiro fazem questão de exibir a sua riqueza publicamente. Na Catalunha, tudo isso é mais sóbrio, mais discreto, e isso interessava-me, porque gosto que os romances falem de dinheiro.
Porquê?
Porque se falam de dinheiro, falam de privilégios, e é importante falar disso. Enfim, por ser Barcelona o território que melhor conheço, ambientei Rayos e Simón nessa cidade, mas nunca imaginei estes romances como “de Barcelona”, porque os romances não são guias turísticos. Por outro lado, não renego que pertenço a essa tradição de romancistas que muito me influenciaram, que são mestres para mim, como Juan Marsé, Francisco Casavella ou Eduardo Mendoza. Não me sinto nada incómodo, porque são realmente mestres.
No entanto, quer Simón, quer Rayos, poderiam decorrer em qualquer outra cidade. Ou não?
Sim, de certo modo. Por exemplo, em Lisboa. Vivi aqui em 2002 e voltei, por uns dias, em 2005, e agora voltei mais uma vez, e a cidade está a sofrer uma série de mudanças que são muito semelhantes ao que expus em Rayos: a gentrificação, o turismo, a especulação imobiliária, prédios inteiros à venda, gente a ter de sair da cidade. Rayos passa-se em Barcelona, mas podia passar-se em Lisboa.
Pode ser que o traduzam para português…
Bom, adoraria. Tenho um carinho muito especial por Rayos.
Barcelona, como tantas outras cidades, mudou muito nos últimos anos.
Sim, a grande mudança começou com os Jogos Olímpicos, em 1992. Eduardo Mendoza tem uma frase num dos seus livros que diz que o Ayuntamento de Barcelona age do mesmo modo que a chuva acontece na cidade: poucas vezes, mas em grande quantidade. E de facto, Barcelona funciona assim. É o que acontece em A Cidade dos Prodígios, de [Eduardo] Mendoza, que fala da Exposição Universal de 1888 e percorre uma cronologia até à Exposição Universal de 1929. E percebemos que já desde o século XIX a cidade avançava ao ritmo dos grandes acontecimentos, sempre a querer apresentar-se como símbolo da modernidade, e isso continuou com os Jogos Olímpicos. Em cada um destes momentos, Barcelona muda de uma forma muito brusca e depois seguem-se uma série de anos de recessão. Depois das Olimpíadas, a cidade parecia que estava de ressaca depois de uma grande bebedeira. Nos últimos anos, não houve um acontecimento assim, grandioso, mas houve outros, como o processo independentista, que tem marcado o estado anímico da cidade, a crise económica, agora a pandemia. Barcelona está agora nesse ponto, a tentar perceber para onde vai.
Ainda consegue encontrar a cidade onde viveu a infância quando passeia por essa Barcelona actual?
Sim, de certo modo. Consigo encontrar algumas coisas da cidade onde cresci, mas não da cidade de Simón, por exemplo, porque essa fui eu que a inventei, é a cidade que mitifiquei aos 40 anos, pensando naquela em que vivi quando tinha 8. É uma ficção, claro. Pensemos no bar da família de Simón, que parece aquela coisa muito “autêntica”, de que sentimos falta, mas temos de nos lembrar que nesses bares também havia uma série de comportamentos absolutamente inaceitáveis dos quais não temos saudades e que não entram nessa mitificação. Suponho que Barcelona nem seria tão bonita antes, nem estará tão apagada agora.