Mar Negro
Ana Pessoa
Bernardo Carvalho
Planeta Tangerina
No site da editora Planeta Tangerina, Ana Pessoa entrevista-se a si própria num exercício retórico sobre a duplicidade. A esse propósito, que a autora considera ser o tema da segunda banda-desenhada que assina em parceria com Bernard Carvalho, discorre Ana Pessoa sobre personagens simbólicas e sobre experiências de escrita que lhe pareceram simbólicas e instrumentais.
Ora, tal associação copulativa provocou nesta leitora uma dúvida de monta: como pode ser o simbólico instrumental?
A resposta reside no livro Mar Negro e na identidade autoral da escritora e do ilustrador que respiram em uníssono, alimentando ritmo de movimento, progressão narrativa, diálogo, e silêncio, contemplação, vazio.
O vazio, o que extravasa para fora da vinheta e não se vê, o pontilhado que cobre de névoa o espaço, as linhas que transcorrem as pranchas, todos estes elementos contribuem para uma relação simbólica que não se esgota num referente e num ou dois significados. Não há lugar ao instrumental.
Mar Negro é o gelado mais desejado, é também aquele onde acontece a tragédia. Interessante que no café de praia onde Inês, a protagonista, trabalha, ou fora dele, nunca se fale no mar ou na praia. Estamos do outro lado do espelho. Aqui Inês cumpre com brio a sua função de empregada e mantém uma seriedade distante do colega JP. O seu profissionalismo é coerente com a ordem que impõe aos gestos e movimentos quotidianos. A informalidade chega através da relação com Vera, vizinha e confidente qb. É Inês quem o leitor acompanha, é ela que vai descobrindo através de ações e comentários, é sobre ela que constrói juízos e suposições. Sem nunca lhe ser dado o privilégio de aceder a um pensamento, uma divagação interior da protagonista. Assim que estruturamos um caráter, logo a narrativa nos troca as voltas. A tragédia que se abate sobre a praia tem um efeito transformador em Inês. Mais uma vez, o leitor é deixado à deriva, surpreendido pelas atitudes e decisões de Inês.
Toda a narrativa assenta nisso, na experimentação de Inês sobre a vida, sobre as relações, sobre si própria. Guarda um segredo, apropria-se do que não lhe pertence. Há um cachecol simbólico que desaparece em certos momentos e que só a ilustração nos permite acompanhar. A imagem, tanto ou mais que o texto, congrega tudo o aquilo a que o leitor pode aceder: as expressões de Inês, a observação de si própria, o que veste, como reage, por onde anda, os seus conflitos… Também poderíamos falar de amor e de amizade, mas seria redutor. Mar Negro é sobre Inês, sobre a sua identidade, sobre um trauma, uma leitura da sua vida e sobre a duplicidade, como afirma a autora. Tudo o que existe subjetivamente reflete e relaciona-se com o outro. Porém, esta banda-desenhada é avessa a definições ou conceitos orientadores. Por isso não pode ser sobre amor ou amizade. É sobre o eu e hipóteses de ser. Nada tem de simbólica instrumental.