Crítica Sara Figueiredo Costa 2 Maio 2025

Livro da Doença
Djaimilia Pereira de Almeida
Relógio D’Água

O mais recente livro de Djaimilia Pereira de Almeida (recentemente distinguida com o Prémio Vergílio Ferreira 2025 pelo conjunto da sua obra) nasce de um outro livro, inexistente, quimérico, inalcançável. O Livro da Doença estrutura-se a partir da busca do livro nunca escrito pelo pai da narradora, uma obra que foi sonhada, pensada e sobretudo profundamente desejada pelo seu autor potencial, mas que acabou por não ganhar essa concretização que permitiria dizer “eis um livro”.

«O sonho dessa obra foi a herança que me deixou. Como parar de sonhá-lo, se jamais o li?»
(pag.17)

Essa herança é o gatilho para a escrita, não tanto como vontade de concretizar o que não chegou a acontecer, mas antes como motor de procura, quase alavanca para um desejo de reunir as peças que permitam alguma compreensão desses mecanismos que nos formam a identidade, entre o tanto que ignoramos sobre quem nos antecedeu e o tanto que podemos, apesar de tudo, saber sobre como nos vamos definindo. O livro não escrito, essa herança do que não foi, acaba por ser apenas um dos muitos nós numa planta complexa que se vai desenvolvendo nesta prosa, cheia de ramificações que apontam simultaneamente ao passado e ao futuro. Depois da morte do pai, nessa travessia de um luto que é perda, mas também descoberta, a narradora vai encontrando objectos, recortes, pequenos vestígios, e com eles vai construindo uma constelação possível para a história do seu pai, um jornalista com alguns trabalhos marcados por uma certa ideia de aventura que romanticamente associamos ao gesto da reportagem, que viveu alguns dias no deserto com a Frente Polisário, que atravessou perigos, imensidões de paisagem, e que teve a sua quota de segredos guardados, como toda a gente. Alguns desses segredos vão sendo desfiados em jeito de hipótese, uma vez que as confirmações tendem a ser difíceis depois da morte, quando o que sobra é a memória e quando sabemos que a memória é essa matéria em permanente reconstrução, modulada pela imposição de um presente e pelo que dele conseguimos fazer.

Cruzando esta viagem desordenada pela vida do pai e do seu livro não escrito, a narrativa vai desfiando outras linhas, das ruas de Lisboa que se revelam, ao mesmo tempo, espelho e terreno minado, à doença mental, que chegou em forma de crise aguda e que acabou por definir uma fronteira, um antes e um depois, ao mesmo tempo que criou uma outra consciência de inúmeras dimensões poderem existir naquilo que acreditamos ser uma pessoa, uma mente. De certo modo, o Livro da Doença investiga essas dimensões e a narradora atravessa o livro como uma batalha, uma série de enfrentamentos – consigo própria, com a memória e o seu constante refazer, com o mundo – que procuram a cada parágrafo uma espécie de certeza sobre a singularidade que arrastamos, cada um de nós, ao longo de uma vida e mesmo depois dela, no eco que podemos deixar nos outros.

Essa procura é um eixo possível para a leitura deste livro, sem que a narrativa se deixe dominar por um rumo unívoco. Pelo contrário, o Livro da Doença espalha a sua estrutura em múltiplas direções, mimetizando esse gesto de questionar, reflectir, um gesto que se vai desdobrando ao ritmo de novas perguntas, caminhos encerrados, algumas portas barricadas que é preciso contornar ou mesmo dinamitar. A imagem de um caule e as suas ramificações imprevistas seria eficaz, mas mais precisa será a imagem de uma espécie de micélio, essa teia viva que se espalha pelo solo e pelo subsolo, permitindo a germinação de fungos – uns comestíveis, outros venenosos – e estabelecendo contactos entre as outras espécies vegetais de uma floresta. De certo modo, é o que acontece no corpo e na mente quando uma doença se espalha, não necessariamente de um modo fatal, mas inevitavelmente contaminando o corpo, os gestos e o pensamento, fazendo do todo um organismo que pertence a essa alteração profunda.

O frenesim de indagação e pesquisa que atravessa o livro passa, em boa medida, por uma reflexão sobre a própria escrita, não tanto enquanto ofício ou técnica, mas enquanto gesto essencial que não se desliga das outras vertentes que definem, se tal é possível de um modo contundente, a identidade da narradora (e, talvez aqui não seja abusiva a derivação, da própria autora). «Escrevo para resgatar uma singularidade e não para dar testemunho. (…) A forma do que escrevo, a mancha com vida própria que se distende e se aperta à medida que teclo, e não apenas o que digo, é o único corpo que se substitui ao corpo da culpa. Cento e cinquenta mil caracteres por um saco de explosivos, troca por troca.» (pg.157) Essa singularidade, enformada por um percurso único, pela relação com o passado e com a herança familiar, pelo modo como cada acontecimento biográfico se precipita, acrescentando um elemento à complexa estrutura que somos, é talvez a grande linha estruturante deste Livro da Doença. De certo modo, a própria ideia de doença se reflecte nessa obsessão pela singularidade por entre o tanto que parece comum. Se qualquer maleita, ligeira ou grave, permite uma consciência do tanto que nos une enquanto espécie, do tanto que nos parecemos ou igualamos quando falha algo no corpo ou na mente (dimensões que talvez nem faça sentido separar), a doença enquanto falha – de um orgão, de uma função, de uma capacidade – nunca deixa de ser única na sua concretização. E descobrir os modos possíveis de fazer conviver tantas singularidades será sempre o cerne de um abismo, uma procura constante, a inquietação a que chamamos vida.

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