Casa da Andrea Andréa Zamorano 21 Janeiro 2022

Carta a Cortázar

Lisboa, 16 de Janeiro de 2022.

Querido Júlio,

Primeiro gostaria que soubesse que estive na sua cidade, depois que as nossas casas estavam a setecentos e cinquenta metros de distância. Uma casualidade que não poderia ser desperdiçada. E já que tomei tanta liberdade, aproveito para contar uma outra coincidência: o fato da minha cadela se chamar Teodora. Acredito que o batismo do animalzinho deveu-se não ao poema do meu adorado Manuel Bandeira, como alguns quiseram me fazer crer, mas antes a uma memória que se colou no fundo do meu cérebro: a do “seu” gato vadio (o Teodoro Adorno).

E por essas pequenas sortes na vida, entendi que para chegar até a sua porta, ao invés de ir pelo caminho mais curto, deveria dar uma volta bem grande. Antes de começar, fiz uma pausa para um café. Bebi um gole, senti a espuma espessa no lábio — que bom era — pousei a xícara no balcão e sai para a caminhada — quem me dera fumar. Prometo, um dia hei de conseguir voltar a fumar e será Gitanes (ou o que houver porque o dinheiro não é muito para gastar com certos luxos. Sei que me entende).

Olhei em volta, estava acompanhada. Um poeta alto e magro ia ao meu lado. Poderia ser você, era outro. Mas quem éramos? — Foi com ironia metafísica que fiz a piadinha (sem graça). Imaginei o seu risinho discreto se pudesse me ver. O poeta falava comigo. Eu o ouvia tomada por uma minúscula distração, logo voltei. Tudo em mim lhe buscava. Entramos pelo caminho que cruzava as galerias cobertas, sua pátria secreta desde sempre e os espelhos me revelaram que os burgueses continuavam a se apaixonar por prostitutas. Fiquei feliz.

Era de tarde, estávamos naquela hora morta entre o depois de um almoço e o jantar porvir. Não estranhamos as pessoas escassearem pelas ruas, o trânsito a fluir sem alterações, ainda faltava para as escolas darem o toque de saída, tínhamos o vazio a nosso favor. Andávamos pela margem que você escolheu para tomar notas num bloquinho e depois regressar para a máquina de escrever pousada na sala do seu novo apartamento. Um pouco maior do que o anterior, porém seu e da sua Carol. Acredito piamente na felicidade daqueles dias.

Dobramos numa esquina, um vento surgiu com força. Puxei a gola do sobretudo para cima e continuei. Um cavalete, escrito com giz, publicitava para os desavisados: “dépôt-vente la marelle – 1974”. Em seguida, passamos por um dos arcos de Luís, o rei que se acreditava magno e, desde Versalhes, mandou abrir e pavimentar as ruas pelos seus lados. Hoje elas estão pejadas de lojas, de pessoas e de palavras em línguas de outros lugares como as nossas próprias.

E éramos então três, conforme a aritmética do seu mundo. Eu, o poeta magro e alto (que não era você, como sabido) e o meu marido que é baixo e gorducho (não se confundindo com o poeta que poderia ser confundido com você em altura e magreza. Só era pena não fumar para incrementar a fantasia). Três seres conduzidos pela minha fixação em dar a volta a metade da cidade para percorrer escassos metros. Um pequeno bando que não era um clube pois cada um tinha as suas próprias preferências mas também o era visto que alinhavam em périplos sem nenhuma utilidade.

Sorri ao chegarmos na frente do seu prédio. Contemplei a fachada devagar, tentando adivinhar qual das janelas do quarto andar se abria quando você precisava ver o que estava acontecendo ali fora. O seu nome aparecia escrito numa placa de pedra, li em voz alta, no meu francês de bula de produtos cosméticos: “ici vécut Julio Cortázar”. Atravessei a rua, espreitei pela fresta entre a grade e a parede. No interior, um grande pátio unia um conjunto de prédios. Não sabia que era assim. O portão se abriu e sem hesitar, saltei lá para dentro.

Fui visitá-lo.
E para sentir você presente, imitei os seus passos com os meus atravessando o interior do saguão na 4 Rue Martel.

Com toda admiração e carinho,
Andréa

PS: No dia do meu aniversário, fomos a Montparnasse.