A Alma Perdida
Olga Tokarczuk / Joanna Concejo
Fábula
É comum que diversos escritores de narrativas para adultos façam breves incursões pela literatura infantojuvenil. Infelizmente, em grande parte dos casos o resultado não espelha a coerência devida, muitas vezes graças a uma infantilização desmedida, a desequilíbrios entre a intenção temática e a composição do texto e até a uma ausência de identidade estética e literária. No caso deste álbum, a sua estrutura não o leva nessa direção. O texto é curto e, surpreendentemente, não se encontra distribuído pelas páginas do livro, como é frequente. Ao contrário, depois de duas belas ilustrações de Joanna Concejo o leitor é convidado a ler a quase totalidade da narrativa. Esta debruça-se com parcimónia e delicadeza sobre uma perda fundacional e descreve-a com uma densa simplicidade: um homem perde a memória e a noção de si próprio. Uma sábia médica explica-lhe que tal se deve à perda da alma, cujo ritmo é mais lento que o desvario quotidiano. Por outras palavras, a perda da alma significa alienação. Sem grandes re”exões, descrições ou juízos, o texto prossegue em sucessão temporal e causal. Não há intervenções de outras personagens, não há qualquer informação contextual excepto a essencial para que o leitor sinta os efeitos dos dois comportamentos do homem, antes e depois desta ruptura interior. A lógica é singela e a economia textual deixa margem para o vazio, o silêncio do próprio texto. Se este se dirige ao público mais novo, tal não se detecta no corpus, nem isso nem o seu oposto. Apenas que a simplicidade narrativa assim o permite, tanto quanto permitirá provavelmente leituras muito distintas em função da idade, da experiência e do contexto de quem a ler. Por seu turno, a ilustração de Joanna Concejo em nada macula a clarividência da imagem textual. Poderosa e misteriosa no traço a carvão e lápis de cor, a narrativa visual continua a linha de acção interrompida quando o homem espera pela sua alma. Em nenhum momento alguma palavra lhe dá corpo ou forma, é a ilustração que o faz. E com ela cria um percurso paralelo, pleno de enigmas, por onde a alma terá passado até reencontrar o homem. O diálogo entre o exterior, onde deambula a alma e o interior, onde o homem aguarda, rodeado de plantas ávidas de crescimento, é também um diálogo sobre a observação de si próprio e do mundo, com a janela e a porta a mediarem este desejo de encontro. Até lá, todos os tons são neutros, cinzas e sépias. Depois do encontro emergem os verdes e vermelhos de folhas e “ores, sempre com o detalhe de contrastes e formas que representam cada momento e cada espaço com textura e profundidade. À poética do texto a ilustração traz camadas de densidade que levam à lentidão de observar. O livro cumpre-se assim na totalidade, na forma e no conteúdo e existe como razão que justi!ca a sua própria tese; é um objeto de arte.
O leão sem juba, o elefante sem tromba e a casa sem telhado
Rita Taborda Duarte / Rachel Caiano
Caminho
Não é novidade reconhecer a mestria do jogo semântico e lexical na escrita de Rita Taborda Duarte. A sua atenção à plurissignificação e a sua capacidade de se desvincular do literal conferem-lhe uma originalidade questionadora e a espaços desarmante. Mais uma vez, é exatamente disso que se trata nesta narrativa longa. A previsibilidade da estrutura, que segue a experiência dos três protagonistas, o leão, o elefante e a casa, a quem falta algo que supostamente elementar, pode surpreender mas é justamente essa previsbilidade que permite a experimentação do sentido sem tornar o texto hermético ou ilegível. Partindo de uma lógica de felicidade – os três sentem-se muito bem por não terem juba, tromba ou telhado – o narrador segue descrevendo a pretensa utilidade dos instrumentos para todos os pares. A diferença está então assumida. Sobre qualquer carência, nem uma palavra. Ao leitor resta questionar-se sobre a efetiva necessidade do que se habitua a entender como essencial. Mas o golpe fatal chega com a desconstrução final, numa prolongada catarse de acidentes. Um tornado que desregula a ordem instalada no mundo, cria caos e lança novas combinações. Se é possível que existam ornitorringos (“um pato foi parar à Austrália e ficou com uns pelos de rato e umas maminhas que encontrou espalhadas e que, assim por assim, resolveu guardar para si”) ou peixes abissais (“Um peixinho do fundo do mar apoderou- se de umas dentuças de tubarão e mais de uma lanterna que, durante o furacão, tinham ido parar ao fundo do mar;”), então porque não podem existir leões sem juba, elefantes sem tromba e casas sem telhado? Ora acontece que o furacão provoca ainda mais desarranjo mental: se se comprova cienti!camente uma anomalia, não há porque não sermos arrojados na troca e encontrar razão de ser em uniões nunca antes previstas. E entre os três as trocas acidentais resultam na perfeição, não apenas a cada um como aos três em união. Tudo não acaba ali e logo se antecipa o que acontece à minoria…
Rita Taborda Duarte tece assim um manifesto à liberdade e ao direito à escolha, com direito a acasos, a decisões, a palavras de ordem e a encontros felizes. Do pretenso absurdo se cria um discurso de humor muitíssimo sério. Ou as palavras seriam de uma pobreza confrangedora.