Ainda não é o fim do mundo (mas já se faz tarde)
Físico em formação, como provavelmente todos os cientistas serão ao longo da vida, Luís Fazendeiro tem dois doutoramentos concluídos, um sobre turbulência de fluidos (na University College London), outro sobre sistemas sustentáveis de energia (na Universidade Nova de Lisboa). Ao trabalho científico tem aliado uma participação activa na discussão e nos movimentos pela justiça climática, trazendo esse contributo informado pela ciência e apoiado numa visão do mundo onde política, sociedade, economia e cultura não são compartimentos estanques. Recentemente, publicou Sobre a Mudança – Justiça climática e transição ecológica no século XXI (Livros Outro Modo), um livro que assume a discussão política sobre a crise climática como algo essencial e que apresenta os dados científicos e as questões técnicas associadas ao tema de um modo acessível a quem não vem dessa formação em Ciência. Com os aviões que sucessivamente aterram em Lisboa a interromperem a gravação com demasiada frequência, Luís Fazendeiro conversou com a Blimunda sobre este livro e sobre os desafios que colectivamente enfrentamos relativamente às alterações climáticas. E nem chegámos a falar sobre se o país precisará de um novo aeroporto em Lisboa ou de investir a sério em via férrea que nos ligue ao mundo sem a poluição dos aviões…
Este é um livro que aborda uma série de temas que têm algum grau de complexidade técnica, digamos assim, mas que apesar disso desenvolve esses temas de um modo acessível à maior parte dos leitores. Tiveste essa preocupação quando escreveste?
Tive, o objectivo era mesmo esse. Isto surgiu um bocadinho por convite da editora [a cooperativa Outro Modo, que também publica a edição portuguesa do Le Monde Diplomatique], que estava a pensar lançar qualquer coisa sobre o ambiente, uma temática que eles não cobrem muito – a maior parte dos livros que eles publicam é mais de ciências sociais, ou de ciência política. O convite inicialmente foi fazer um apanhado de alguns textos que eu tenho publicado no jornal, o Le Monde Diplomatique. Só que eu já tinha o plano deste livro na cabeça há muito tempo e pensei que os textos iam ter muita repetição, porque um artigo no jornal tem de ser mais ou menos auto-contido, não é? Então, pensei em fazer o livro que já há anos queria escrever e que já tinha um monte de notas tiradas. E juntei um bocadinho as duas coisas, sendo que a editora me pediu para desenvolver um pouco mais a parte relativa a Portugal. O objectivo é sempre tentar chegar ao maior número de pessoas possível. E isto também é um risco por si, porque percebi logo que talvez a editora estivesse à espera de uma coisa mais elaborada, porque eles, por exemplo, publicam muitas teses universitárias, teses de doutoramento… Como tentei ter a linguagem mais simples possível, às vezes isso podia entrar um bocadinho em choque, mas o objectivo é mesmo tentar chegar ao maior número de pessoas. Se calhar é ingénuo da minha parte, mas é assim que eu vejo as coisas, não consigo pensar de outra maneira.
Este livro refere uma série de mitos relativamente à crise climática e às várias questões ambientais e um deles é o mito do consumidor individual. Ou seja, é aquela ideia que faz acreditar que se deixarmos de usar palhinhas de plástico e pusermos o lixo da reciclagem, acaba esta crise climática e vivemos felizes para sempre. Como é que saímos desta ideia sem perdermos também a nossa responsabilidade individual?
Pois, dá pano para mangas… Houve alturas em que hesitei e pensei que, se calhar, não devia estar a escrever isto, porque já toda a gente sabe, é mais do que óbvio. Só que tenho feito bastantes debates nos últimos anos e participado em eventos públicos, e mesmo às vezes com públicos muito politizados, até com pessoas da universidade, a questão vem à baila: se todos nós fizéssemos a nossa parte, o problema resolvia-se. Acho que isso já faz um bocado parte de um certo inconsciente colectivo. Se nós todos fôssemos mais pacifistas no dia a dia, acabávamos com a guerra na Ucrânia ou no Sudão? Provavelmente não. É bom que sejamos o mais pacifistas possível e tratemos os outros com a mesma importância, claro. Por exemplo, a questão de deitar lixo para a rua, de atirar beatas, de cuspir para o chão, sei lá, toda uma série de medidas de higiene que há algumas décadas poderiam ainda não estar muito enraizadas na cabeça das pessoas, e que entretanto formaram parte de um consenso geral e as pessoas tentam segui-lo. E se calhar vai acontecer o mesmo com a questão da reciclagem, de tentar reduzir os consumos de carne, tentar andar menos de avião. Agora, isso por si só, como procuro argumentar no livro, não resolve porque o problema que nós enfrentamos, que é mesmo muito, muito, muito grande. Por isso tentei dar algumas pistas: se calhar, muito mais importante é as pessoas organizarem-se de forma colectiva, é pensar em termos de o que é que eu posso mudar numa local de trabalho, será que o partido político em que eu voto ou em que estou a pensar a votar tem estas questões suficientemente em conta e de que maneira, será que estão a fazê-lo da maneira certa? E há aí uma pessoa que eu cito muito também, que é o Bill McKibben, que usa muito esta imagem de que as ações individuais vão se somando, são pequenas parcelas que vão se somando de forma individual, mas a acção colectiva tem um efeito multiplicador, nós podemos trazer muito mais pessoas para a causa, podemos ter um impacto muito mais concertado. Por exemplo, se um grupo de cidadãos se reunir, tentar influenciar a política da Câmara Municipal de Lisboa, no sentido de ter mais transportes públicos ou até no sentido de reduzir o acesso rodoviário a determinadas faixas da cidade, isso teria um impacto muito maior do que qualquer pessoa poderia ter, ou este grupo de pessoas, cada uma em sua casa, ou nas suas coisas individuais. Portanto, acho que é por aí que se tem de ir. Agora, a tua questão também vai num sentido muito mais lato, que é como é que nós quebramos esta espécie de consenso social que foi um bocado fabricado e que eu vejo novamente na universidade, às vezes até em algum ativismo, nas ONGs. Não vou citar exemplos, mas… Pessoas extremamente educadas e que trabalham nesta área há décadas e que mesmo assim cometem o erro de dar imenso espaço a este tipo de questão da acção individual. Acho que isto toca também um bocadinho mais no que eu tento fazer no livro – e que posso ter falhado de forma retumbante – que é questionar como é que estes consensos se criam. Nós sabemos que existem campanhas de publicidade, mas existe também todo um clima cultural que é criado, nos filmes, nos livros, nos debates públicos… Quando temos um debate na televisão com comentadores a discutir a questão, há sempre balizas, que às vezes poderão não ser muito visíveis para toda a gente: o que é que se pode ou não dizer? Tudo isso formata um pouco o pensamento colectivo, não é? E portanto acho que é aí que tem de se agir, também.
Isso quer dizer que parte da responsabilidade é nossa, mas não pelo facto de reciclarmos ou não, e antes pelo modo como nos relacionamos com a política, em sentido mais geral? Ou seja, uma responsabilidade que decorre da nossa posição relativamente àquilo que são as escolhas e as condutas de quem tem poder para tomar decisões?
Sim, acho que é mais ou menos isso, mas é mais complexo do que a ideia de que se elegermos as pessoas certas, então tudo se resolve. Acho que talvez precisemos, todos nós, de nos envolver um bocadinho mais na questão pública, na causa pública, às várias escalas. A Junta de Freguesia, a Câmara Municipal, o Governo, todos esses níveis. As próprias ONGs, por exemplo, se conseguimos mudar o discurso das ONGs no geral, e no caso de Portugal, que se calhar está um bocadinho atrás até dos outros países, pôr de lado completamente esta questão da responsabilidade individual e focarmo-nos muito mais nas políticas públicas, nas grandes empresas, acho que só isso faria uma diferença brutal. Portanto, é preciso mudar o mindset com que nós estamos. Dou aí alguns exemplos, no livro, por exemplo, a questão da reciclagem. É uma questão de cidadania, ou seja, é melhor fazer isso do que não o fazer. Agora, por exemplo, em Portugal, há um problema nessa área, que nem sequer abordei directamente no livro, e que é uma coisa que me deprime tanto…
Qual é esse problema?
O sector dos resíduos é talvez aquele que está a falhar de maneira mais estrondosa todas as metas. E isto prende-se em grande parte, não com as acções das pessoas, se estão a separar em casa ou não, mas com o que acontece com todo o processo. O plástico que nós pomos no contentor amarelo para reciclar, em grande maioria não é reciclado. Mesmo pessoas que estão ligadas ao sector dos resíduos, das ONG, etc, dizem que para as grandes centrais incineradoras e no sítio onde o lixo é queimado, muitas vezes algum plástico, algum papel, é bastante cobiçado, porque até ajuda a melhorar a qualidade da chama. Ou seja, o lixo em Portugal – e não tenho agora aqui as percentagens – é maioritariamente destinado a aterros e queimado nas grandes incineradoras, sendo que uma parte dessa queima até serve para produzir alguma energia. A percentagem do que é reciclado é mínima. Para piorar, nós temos metas europeias com que os governos se comprometeram, que estamos a falhar de maneira estrondosa. Ou seja, nem sequer vamos na direcção certa: em vez de diminuir, está a aumentar.
Os problemas nascem, então, das lógicas de funcionamento dos mercados?
Uma coisa que eu tive o cuidado de fazer na introdução do livro foi falar nos pressupostos que o livro assume, e alguns deles as pessoas poderão não concordar. Há uma coisa que eu escrevi e que vai contra aquilo que a maior parte dos economistas dizem, mas nas sociedades modernas, sobretudo quando falamos em bens não essenciais, no meu entender é a oferta que cria a procura. Ou seja, as empresas fazem investimentos, criam novos produtos, e depois têm de criar toda uma procura, que muitas vezes é artificial, para nos convencer de que nós precisamos daquele refrigerante, precisamos de um novo laptop mais rápido do que o anterior, precisamos de um carro, enfim, todas estas coisas. Mas as decisões já foram tomadas no outro lado. E, portanto, acho que se nós conseguirmos, ao menos, visibilizar esse processo e dizer “atenção, a responsabilidade pela crise climática está aqui, está nos decisores das principais multinacionais a nível mundial, está nos governos dos principais países”, acho que de repente estamos a ter outra conversa completamente diferente.
Em termos práticos, a crise climática não tem sido uma prioridade séria dos governos, nomeadamente do português. O livro fala de vários documentos e tratados internacionais que foram assinados por governos, mas que na verdade não se cumprem. Isto ajuda a cristalizar aquela ideia de que por um lado que estamos a fazer todo o possível e por outro lado que também não temos saída?
Se queremos resolver um problema que é extremamente complexo como este é, e se colocamos à partida toda uma série de pré-condições e dizemos «vamos resolver o problema, mas atenção, não podemos prejudicar o mercado, não podemos prejudicar o lucro das nossas maiores empresas, as principais indústrias têm de continuar na mão dos privados, o Estado não pode intervir directamente no funcionamento das empresas, não queremos deprimir o comércio de automóveis, porque isso é uma das maiores fontes de riqueza portuguesas e europeias»… Ou seja, condição atrás de condição atrás de condição. Então, se chegarmos realmente à situação em que, até me atrevo a dizer, e isto vai ser um bocadinho polémico, se calhar os governos europeus até estão a fazer muito perto do máximo do que eu acho que eles consideram que é possível fazer, tendo em conta todas estas pré-condições, as pessoas percebem aonde é que se quer chegar. Quando partimos para o problema com este tipo de mentalidade, então eu diria que o fracasso é praticamente garantido à partida. Agora, não acho que os governantes queiram falhar por desígnio, mas se calhar não conseguem mesmo imaginar uma alternativa.
Será preciso mexer nessas condicionantes todas?
Sim, não abdicando à partida de qualquer instrumento. Acho que isto é muito visível se pensarmos no que foi a Covid-19. É verdade que uma crise sanitária, uma pandemia, é uma coisa muito mais imediata, mas os governos não disseram «Bem, esperemos que a Repsol resolva isto. Será que a Galp vai começar a produzir vacinas e a distribui-las?» Não! Os Estados são soberanos e tiveram de tomar nas mãos a rédea do problema e resolvê-lo. Também repito várias vezes a pergunta sobre quem é realmente responsável? Por exemplo, uma estatística que acho que não citei aí, mas está nas fontes, é que os cerca de 1% mais ricos a nível mundial têm uma pegada de carbono maior e um impacto ambiental maior do que os 50% mais pobres.
E são esses mais pobres, pessoas ou países, que mais sofrem com a crise climática.
Sim, e tenho muita dificuldade em pensar nisto, acho que é uma injustiça cósmica que não sei como descrever. Vamos falar da África, sobretudo da África Sub-saariana, do Sul da Ásia, do Sudeste Asiático, de uma boa parte da América Latina. Estas pessoas têm impactos ambientais absolutamente negligenciáveis. Por exemplo, há umas semanas encontrei uma estatística de um activista norte-americano que diz que um frigorífico de gama média nos Estados Unidos, portanto, aquele frigorífico que as famílias têm em sua casa, tem mais emissões do que um habitante médio na Nigéria, ou as emissões per capita na Nigéria. E a Nigéria aqui é importante, porque não é de todo um dos países mais pobres da África, tem indústria, etc. Estamos a falar de um frigorífico! Quando pensamos, por exemplo, num SUV, que agora está na moda, os números explodem completamente. E quando falamos desta proporção de o 1% mais rico ser duas vezes mais responsável do que os 50% mais pobres, estamos a dizer que, por exemplo, 14 milhões de pessoas nos Estados Unidos ou na Europa, de entre os estratos mais ricos da população, têm maior impacto a nível global do que toda a população do continente africano, que são cerca de 1400 milhões de pessoas. São valores absolutamente astronómicos.
Este livro discute uma série de áreas de intervenção muito concretas, sobretudo na parte referente a Portugal, como a questão da habitação, ou a dos transportes, nomeadamente da ferrovia. E há uma série de propostas que, na verdade, podiam mitigar a crise climática, ajudando, de caminho, a resolver outros problemas, como o caso da habitação (se recuperássemos o parque habitacional devoluto, não precisávamos de construir mais, e poupávamos esse enorme impacto, nomeadamente da produção de cimento). Porque é que isso não se faz?
A ortodoxia actual diz que a economia de um país deve crescer todos os anos. Nós já ouvimos isto desde crianças, está incutido na nossa cabeça e parece uma coisa boa: o que importa é se o PIB está a crescer ou não, a subir ou não. E mesmo que suba, pode haver críticas por não estar a subir o suficiente. Ora, o PIB mede, basicamente, a quantidade de materiais e de serviços que nós estamos a produzir. E todas as actividades têm um impacto ecológico directo, quer seja em termos de usar materiais, quer seja em termos das emissões que causam. Se partimos do princípio que a economia tem de crescer sempre, ano após ano, muitas destas soluções podem tornar-se problemáticas. Se pensamos que quatro, cinco ou seis empresas têm uma fatia enorme de toda a economia portuguesa, então também por esta lógica, tudo o que for mau para o lucro destas empresas poderá pôr em causa o crescimento económico, seja uma Auto Europa, uma Galp, ou uma Cimpor. Outra área será o turismo, por exemplo. Há poucos dias ouvi um responsável da Câmara do Porto a dizer «Ah, se queremos ter uma economia baseada no turismo, então é óbvio que isto vai ter impactos e que vai afectar a população.» Portanto, parte do princípio que nós queremos ter uma economia baseada no turismo, coisa que, em Portugal, parece ser bastante consensual. Outra coisa que, se calhar, também pode ajudar um bocadinho a explicar tudo isto é que, à medida que as pessoas vão subindo em termos de carreira, ocupando postos mais altos, nas universidades, nas empresas, muitas vezes até na política, começam elas próprias a fazer parte de um certo status quo. E a pressão para pensar como pensam é muito grande, também. Se calhar não estou a transmitir isto bem, mas há toda uma série de pressupostos que se tornam um bocadinho a linguagem comum, não é? E se a pessoa não assume isso, pode ser vista como louco. Ou estranho, excêntrico, não é sério, não é realista, não é pragmático. Só que, realmente, nós estamos aqui com um modelo económico que não é sério, não é realístico e que não é pragmático, é o contrário de todas essas coisas. Que funciona se calhar muito bem a curto prazo, sobretudo para a economia, mas que cria miséria, como nós estamos a ver também com a crise da inflação e do custo de vida, que está a destruir completamente os ecossistemas planetários e a pôr em causa a nossa possibilidade de sobreviver.
A dada altura falas sobre as dificuldades, ou as armadilhas, que pode haver no transmitir da mensagem. Qual é o impacto real que o activismo mais recente tem tido na consciencialização de pessoas que estão em casa a ver as notícias e que de repente ouvem falar da crise climática através de uma manifestação ou de uma acção directa, que tipo de impacto é que isso tem na consciência colectiva?
Acho que tem um impacto muito, muito grande. Vim para Lisboa em 2014 e tentei envolver-me em algumas coisas, e lembro-me de ir a manifestações pelo clima e estarem 50 pessoas. Depois, com a questão do petróleo e do gás, isto ganhou uma certa dimensão, mas estamos sempre a falar de 500 pessoas, quando se chegou às mil foi um sucesso. E com a Greta Thunberg, com a Greve Climática Estudantil, de repente tivemos ali um salto quantitativo. Penso que em Lisboa, em 2019, houve manifestações com 20 mil pessoas. E no mundo inteiro foram milhões. Isso influenciou também os decisores políticos, acho que perceberam que talvez pudessem fazer um bocadinho mais, mesmo dentro dos tais parâmetros de que estávamos aqui a falar, mas tendo de levar isto tudo muito a sério. Agora, uma coisa de que falo no livro, e há alguma investigação também nesse sentido, é que numa causa, sempre que há cerca de 3,5% da população que está mobilizada e disposta a vir para a rua sucessivamente e protestar, num regime democrático, os governantes são obrigados a prestar atenção e provavelmente a mudar algumas das suas políticas. Mas estamos aqui um bocadinho de uma encruzilhada, porque a seguir a isso veio a pandemia e houve um arrefecimento muito grande dos protestos. Também tenho alguma dificuldade em perceber porque é que os jovens não mantiveram este grau de envolvimento, mas aqui tem de se esclarecer muito bem as coisas: há jovens que estão muito motivados, envolvidos, que têm feito acções disruptivas e que compreendem muito bem o problema, compreendendo também o tipo de soluções que são precisas. Mas estamos a falar de algumas centenas de pessoas, e não sei o que é feito daqueles milhares de miúdos que vieram de jardins infantis e escolas em que as pessoas estavam motivadas. Realmente, parece que desapareceram, desmobilizaram, é preciso pensar como é que se podem trazer essas pessoas outra vez para a rua. E há outra coisa que talvez não seja completamente clara para toda a gente, mas que acontece quando estarmos a ver o noticiário e ouvimos falar da crise do custo de vida ou dos combustíveis, e depois ouvimos falar dos incêndios, sempre como se fossem coisas separadas.
Não são?
Não, se conseguíssemos juntar estas coisas e explicar às pessoas que é praticamente tudo a mesma luta e que, por exemplo, as lutas pelas comunidades discriminadas, pelos direitos individuais, também fazem desta luta, não são apenas contra o autoritarismo, ou contra um sistema patriarcal, acho que aí temos uma massa crítica absolutamente explosiva, que é quase uma espécie de gigante adormecido. É preciso que as pessoas compreendam que podem realmente ter um impacto, podem fazer a diferença, mas não sei como é que se chega lá.
Ao longo do livro, consegues equilibrar um sentido de urgência que traz consigo um certo desespero e um sentido optimista que afirma que ainda é possível alterar as coisas. Como é que se alcança esse equilíbrio, quando estamos diariamente a ver o abismo e nenhum gesto realmente sério para sairmos dele?
Nas coisas que escrevo, tento sempre ter uma nota positiva, até porque isso é que é intelectualmente honesto. As pessoas que dizem que está tudo perdido e que não há nada a fazer não estão a ser intelectualmente honestas, porque há sempre qualquer coisa a fazer. Além disso, quero tentar apelar, motivar e inspirar. E, por outro lado, porque eu acredito mesmo nisso, genuinamente. Agora, este equilíbrio é sempre muito instável. Por exemplo, neste momento estou um bocadinho mais pessimista do que estava quando o livro saiu.
A dada altura, terminas um capítulo que também é sobre esse equilíbrio dizendo que «não será talvez a utopia que muitos desejariam, mas também não tem de ser o fim do mundo».
Há um debate neste livro com vários intervenientes… ou se calhar sou só eu sozinho a imaginar que estou a falar com várias pessoas [risos]. Alguns desses intervenientes serão os interlocutores da direita, do absolutismo dos mercados, que é uma ideologia extrema, uma crença quase religiosa em algo que não é comprovado pela realidade.
Estamos a falar do neo-liberalismo?
Sim, em todas as suas vertentes. E estamos a ver agora uma deriva xenófoba, racista, autoritária, etc., em muitos partidos políticos europeus, mas no fundo as políticas deles continuam a ser neo-liberais. Ou seja, é só usar o circo das guerras culturais para dividir pessoas, conquistar eleitores e, no dia a seguir às eleições, aplicar as políticas neo-liberais. Uma outra coisa que também tentei discutir foram os erros lógicos que acho que são cometidos pelas pessoas que escrevem coisas como «estamos todos lixados, estamos no fim do mundo». Acho que eles próprios se contradizem, porque isto não vai ser zero ou um, com o zero a ser um «está tudo bem, é uma pequena chatice, vai ser resolvida facilmente mantendo o sistema exatamente como está» e o um a ser a extinção. Acho que é possível ter um percurso intermédio.
Voltamos ao equilíbrio no modo de abordar a crise climática.
Sim, porque ambas as posições, dizer que não há problema e está tudo bem, ou dizer que o problema é grande demais para resolver e já não vale a pena fazer o que é que seja, levam ao mesmo resultado prático. Isto é uma coisa que, por exemplo, a Naomi Klein diz e muitas pessoas dizem, que é ficarmos no sofá a fazer zapping e não interagirmos.
Isso pode empurrar-nos para a conclusão de que, afinal, podemos continuar a usar combustíveis fósseis?
Sim, porque ou não há problema, ou o problema já não se vai resolver, por isso podemos continuar. E tem de haver aqui uma posição intermédia.
Quando falamos, por exemplo, de carros eléctricos, ouvimos muitas vezes que esses carros também têm impacto e que as baterias são muito mais poluentes do que a gasolina ou o gasóleo.
Sou obviamente crítico do carro elétrico enquanto solução individual. Agora, como explico no livro, se pusermos o carro de combustão interna ou o eléctrico lado a lado, mesma cilindrada, etc, o eléctrico é um bocadinho mais sustentável. O impacto da bateria é maior no início, mas com o carro a gasolina ou a gasóleo temos de estar permanentemente a extrair mais combustíveis fósseis, o que não acontece com o eléctrico. Melhor do que o carro eléctrico são os transportes públicos colectivos, claro.
Voltemos ao equilíbrio entre desistência e optimismo e às possibilidades que ainda temos de mudar alguma coisa.
O que eu acho que pode manter as pessoas optimistas é pensarmos que as culturas estão constantemente a mudar, a evoluir. Aquilo que nós achamos que é certo numa geração não é aquilo que a geração seguinte ou duas gerações a seguir acham que é certo. E quando nós estamos no meio deste processo, a maior parte das vezes há uma espécie de consenso, e mesmo parte de nós está nesse consenso também, em que realmente uma coisa parece tão natural como o ar que se respira. Agora, se olharmos para processos históricos mais de longo prazo, percebemos que estes consensos mudam, estão sempre a mudar, é impossível mantê-los iguais. As leis da entropia, a degradação, o facto das pessoas morrerem e outras novas surgirem com experiências de vida completamente diferentes leva a que isto se mude constantemente. Portanto, o consenso que nós podemos ter agora ou que tínhamos há 20 anos é completamente diferente do que vai haver daqui a 20 anos. Voltando ao coração da pergunta, acho que o que nós estamos a viver é uma tragédia absoluta. O número de vítimas, se se fizer toda a contabilidade, é muito grande. E é absolutamente irrisório comparado com o número de vítimas que vai existir. Quando falamos, por exemplo, em neutralidade carbónica em 2050, no caso da União Europeia e dos Estados Unidos, a China, por exemplo, fala em 2060. Vamos assumir que há uma neutralidade carbónica mundial em 2060, porque é mais ou menos fazível, sem mexer demasiado nas coisas. Isto significa que todas as próximas décadas vão ser mais quentes do que a anterior. Isto não é dito… Eu pergunto sinceramente se o Presidente da República sabe isto, ou o Primeiro-Ministro sabe. Acho que já o ouviram, aqui ou acolá, mas depois esquecem outra vez. A década de 50 vai ser mais quente do que a de 40, a de 40 vai ser mais quente do que a de 30, a de 30 do que a de 20. A de 20 já está a ser mais quente do que a de 10. Há aqui pequenas flutuações, mas a tendência é sempre para subir. Mesmo que reduzamos as emissões, só paramos o aumento da temperatura quando as emissões líquidas forem zero, e alguns anos depois, quando podemos voltar a um equilíbrio químico do carbono na atmosfera parecido com o que acontecia há alguns séculos. É óbvio que ninguém pode ficar contente, ou considerar-se optimista. Agora, entre isso acontecer ou, por exemplo, não haver acção climática e deixarmos a temperatura subir 3, 4, 5 graus neste século, se calhar aí podemos já estar a falar de muitas centenas de milhões e de milhares de milhões de vítimas.
Para além de várias referências a livros e escritores, há um capítulo em que falas do papel das narrativas na história da humanidade, aquilo que provavelmente nos distingue das outras espécies, que é o facto de contarmos histórias. Essas narrativas literárias que referes, de Virginia Woolf, de Ursula Le Guin e de tantas outras pessoas, são bons mecanismos para ajudarem a pensar o mundo e os modos como podemos intervir nele?
Claro que sim. Sempre li imenso desde criança e ler é provavelmente uma das coisas que mais gosto de fazer, não sei muito bem como exprimir isso… Agora, se calhar em termos mais impessoais e mais gerais, são também os escritores que vão ajudando de alguma forma, ou processando se calhar, a forma como estas narrativas se vão sucedendo e se vão aprimorando e substituindo umas às outras. Por exemplo, tenho pensado bastante no José Saramago, e não o digo por ser a génese desta revista. Alguém como o Saramago, que era obviamente um escritor bastante dotado, acho que teve um papel enorme também a influenciar a maneira como as pessoas vêem o mundo e como trazer muito mais para a frente questões de solidariedade, questões de classe. Se calhar até nos anos, por exemplo, em que ele escreveu os seus maiores livros, 80 e mesmo na década de 90, estavam muito esquecidas e ainda hoje continuam. Acho que o papel dos escritores e dos criadores em geral é quase o sonho colectivo da humanidade, mudar um bocadinho, ou tentar mudar, as histórias que nós contamos a nós próprios. Como diz o Lewis Mumford, um dos autores de que falo no livro, é importante construirmos utopias. Não me lembro agora das palavras exactas, mas ele diz que os críticos do método utópico falharam ao não perceberem a importância das utopias e das histórias que contamos a nós próprios. Aquilo em que nós acreditamos determina em grande medida aquilo que vai ou não acontecer, também. Acho que é uma coisa mesmo muito importante.